"Há recessos desconhecidos na nossa mente que estão além do limiar da consciência relativamente construída. Não é correto designar esses recessos por subconsciência ou superconsciência. A palavra além é simplesmente usada porque é o termo mais conveniente para indicar o lugar. Mas o certo é que não há na nossa consciência nem além, nem debaixo nem em cima. A mente é um todo indivisível e não pode ser desagregada em pedaços" (D. T. Suzuki - Introdução ao Zen)

"Entrar na floresta sem mover a grama; entrar na água sem provocar nenhuma ondulação" (Zenrin Kushu)

domingo, 15 de novembro de 2015

A Síntese da Filosofia Transcendente




“... é preciso considerar que a concepção dos alquimistas quanto à transubstanciação dos elementos é válida, ao menos no interior dos caldeirões estelares. O problema dos alquimistas, para tirar partido de alguma alegoria, é que dispunham de um fogo fraco e de uma panela pequena.” (Ulisses Capozzoli – As Fronteiras Móveis do Conhecimento – Prêmios Nobel da Scientific American – Vol. I – Pág 07)

“O nosso Universo é apenas um de um infinito número de Universos, todos eles ‘Filhos da Necessidade’ porque, na grande cadeia cósmica de Universos, cada elo encontra-se numa relação de efeito, com referência ao antecessor, e de causa, com referência ao sucessor.” (Helena Blavatsky – A Voz do Silêncio,1889 – Ed. Martin Claret)

“A fim de demonstrar o modo como uma alma procura realizar-se na imagem do mundo ambiente, e para fazer ver a razão por que a cultura realizada é expressão e cópia de uma ideia de existência humana, sirvo-me do exemplo do número, elemento dado no qual se baseia toda a Matemática. Escolhi o número, uma vez que a Matemática, cujas profundezas mais remotas só poucas pessoas conseguem sondar, ocupa um lugar peculiar entre as criações do espírito. Até aos nossos dias, toda e qualquer filosofia deve a sua origem ao contato com uma Matemática correspondente. O número é o símbolo da necessidade causal. Contém, da mesma forma que o conceito de Deus, o último sentido do Universo como natureza. Por isso, pode-se afirmar que a existência dos números é um mistério, e nenhum sentimento religioso de cultura alguma jamais se esquivou a essa impressão.” (A Decadência do Ocidente – Oswald Spengler- Editora Universidade de Brasília)

Big Bang

Desde que Heisenberg definiu as novas fronteiras da pesquisa molecular e do estudo das partículas subatômicas com sua Lei da Incerteza as máximas newtonianas deixaram de expressar de forma única a realidade que nos cerca como observadores dos fenômenos e dos movimentos do Universo. Uma nova hermenêutica e semântica foram necessárias ser desenvolvidas para melhor definir a dimensão dos fenômenos quânticos e da interação da matéria no microcosmo. Como não poderia deixar de ser o estudo do infinitesimal influenciou também a cosmologia e abriu novas janelas para estudar o momento da Criação do Universo, o Big Bang, evento que, todavia ainda encontra-se em andamento, com a expansão contínua do espaço-tempo, nesse exato e preciso momento.

A ideia de que a Vida pulsa em todo o Universo (Panspermia) e se espalha como sementes pela pressão da radiação de estrelas para prosperar em ambientes promissores toma cada vez mais corpo com as últimas descobertas das sondas robóticas em Marte e da observação da existência de água em estado liquido em planetas distantes de outros sistemas, a milhares de anos luz do Sol. Da mesma forma os atuais oceanos terrestres, como se sabe, formaram-se do impacto de astros oriundos do espaço profundo que carregavam em seu corpo o precioso líquido formador da vida e interações eletrolíticas complexas através de descargas atmosféricas geraram a atmosfera terrestre liberando gases e as primeiras sementes e nucleotídeos nos oceanos primevos dando origem à formação da vida no planeta que evoluiu da matéria bruta de origem estelar para a vida, de seres monocelulares a pluricelulares e de estruturas biológicas mais complexas para seres sencientes.

É inquestionável, pelas recentes descobertas do mapeamento do código genético, a afirmação da ligação entre todos os seres que habitam a biosfera de um elo comum.  Os vegetais e animais de todas as espécies possuem uma única origem estratificada no registro genético que faz parte de toda a biodiversidade planetária. Não podemos deixar de notar a homologia nos padrões de cromossomos do camundongo e do homem, por exemplo, a extensa sintenia (ocorrência de genes no mesmo cromossomo ou em cromossomos homólogos) entre as duas espécies. Em tabulação recente todos os autossomos humanos, com exceção do 13, mostraram ter pelo menos dois locos (posição de um gene determinado) que são também sintênicos no camundongo. O braço curto do cromossomo humano número 6 tem pelo menos dez locos que estão no cromossomo 17 do camundongo. Por outro lado, a associação de locos do 1 e do 9 humanos no cromossomo 4 do camundongo sugere homeologia (similaridade de conteúdo gênico) entre os dois primeiros.

DNA e RNA
Como podemos considerar um ser vivo ? A questão tem sido levantada por vários cientistas e sempre suscita discussões. B.O Kuppers procurou responder a questão através das propriedades necessárias para que um sistema seja considerado vivo. Segundo o pesquisador, tal sistema deveria ter: a) metabolismo (conjunto de processos relacionados a nutrição, com a transformação do alimento em energia para o organismo); b) auto-reprodução (capacidade de autoduplicação); e c) mutabilidade (possibilidade de alteração no material genético). O metabolismo subentende uma interação de um sistema aberto de troca controlada entre o meio ambiente e o organismo, de matéria combustível e sua transformação em energia e implica também em uma fronteira entre a forma viva e seu meio. A autorreplicação, por outro lado , implica em um estágio bem estruturado de organização dos componentes do organismo e seus primeiros processos devem ter sido no mínimo imperfeitos, o que provocou as mutações. No momento do surgimento desses três processos, sugere Kuppers, a seleção natural condicionará a sobrevivência das cópias mais aptas e automaticamente desencadeará o processo evolucionário.

L.E. Orgel indica os seguintes requisitos, que segundo ele seriam necessários e suficientes para qualificar um organismo como vivo: a) ele deve ter uma complexidade especificada; e b) deve ser capaz de se reproduzir. Isso exigiria que o organismo fosse um produto da seleção natural e que a informação necessária para especificá-lo fosse contida numa estrutura estável para o seu período de vida reprodutiva.

Já A. Lima de Faria dá ênfase ainda maior aos aspectos estruturais do organismo, definindo a vida como uma canalização atômica que se situa em confronto com o restante menos organizado do Universo. Para ele a vida é inerente à estrutura do Universo, e completa: “Um organismo é apenas um dos espelhos que o Universo usa para se olhar”. Por definição ainda C. Bernard, concentrando-se nos processos metabólicos vitais, de anabolismo (construção) e de catabolismo (destruição) elaborou dois aforismos: “A Vida é a criação” e, paradoxalmente, “A Vida é morte”.

Expansão do Universo


A Simetria Perfeita –

O evento denominado Big Bang, como estabelece o termo, dá a noção de uma explosão desordenada, fruto do aquecimento aleatório e da concentração em algum tempo finito no passado, segundo os cosmólogos, há pelo menos 13, 9 bilhões de anos, quando toda a matéria existente no Universo estava reunida em um átomo primordial e expandiu-se em determinado momento gerando todos os fenômenos e partículas ora existentes. O evento de expansão ocasionou um esfriamento conforme a matéria distanciou-se do seu ponto zero. É isto que ensinam os estudiosos.

Na relatividade geral de Einstein tempo e espaço não existem independentemente do Universo ou um do outro. São definidos como mensurações dentro do Universo, como o número de vibrações em um cristal de quartzo de um relógio ou o comprimento de uma régua. É perfeitamente concebível que o tempo, definido desse modo, dentro do Universo, tenha um valor mínimo ou valor máximo – em outras palavras, um começo ou um fim. Não faz sentido perguntar, portanto, o que acontece antes do começo ou depois do fim por que tais tempos não estariam definidos  no horizonte de eventos da Criação.

Universo Expandido

A maioria dos físicos tinham uma aversão instintiva à ideia de o Tempo ter um início e um fim. Portanto observaram que o modelo matemático poderia não fornecer uma boa descrição do espaço-tempo perto de uma singularidade como o evento primordial do Big Bang. A razão é que a relatividade geral, que descreve a força da gravidade, é uma teoria clássica, e não incorporava ainda a Lei da Incerteza da Teoria Quântica, que governa todas as outras forças conhecidas. Essa inconsistência não importa para a maior parte do Universo, durante a maior parte do tempo, porque a escala na qual o espaço-tempo é curvo é muito grande, e aquela na qual os efeitos quânticos são importantes é muito pequena. Mas, na vizinhança de uma singularidade, as duas escalas seriam comparáveis, e efeitos quânticos gravitacionais seriam relevantes. Os teoremas  da singularidade de Penrose e os de Stephen Hawking realmente estabeleceram que a região espaço-tempo clássica é delimitada no passado, e possivelmente no futuro, por regiões onde a gravidade quântica é importante. Para compreendermos a origem e o destino do Universo é necessária uma teoria quântica da gravidade afirmam esses estudiosos.

Campos de Energia das Partículas
     
Hoje sabemos que o conceito de partículas e ondas está diretamente interligado e a matéria como a conhecemos é produto dessa vibração das subpartículas e da consequente geração de campos de energia ondulatória cuja origem encontra-se no evento primordial. As regras de funcionamento dessas radiações e interações entre as partículas/ondas foram definidas nos primeiros instantes da expansão da singularidade e evoluíram a partir dele de forma significativa dando a feição do nosso Universo e sua forma quadridimensional que compõe a interação espaço-tempo. Uma rede intrinsecamente dinâmica que se move, cresce e se transforma incessantemente e de forma ordenada.

Nenhuma nova energia foi gerada após o Big Bang, ela só é convertida a partir do evento primordial, de um estado para outro, dentro de um sistema fechado, com início e fim prováveis. Podemos estabelecer um padrão de formação do Universo que longe de parecer aleatório e desordenado é na verdade um sistema lógico de informação em rede e tempo real que propícia a geração dos elementos em escala do micro ao macro, a partir do vislumbre de campos de energia no plano infinitesimal das subpartículas e da própria matéria até os agrupamentos resfriados das galáxias, convergindo para os sistemas estelares e a formação dos planetas em órbitas variáveis em torno destas fontes conversoras de energia e matéria.

Este conjunto de elementos propícios deu origem ao plano planetário e por sua vez à criação dos fatores que deram origem a vida. Muito mais que uma sequencia de acasos felizes, o que seria como ganhar muitas vezes seguidas numa loteria de números universal, todos os eventos seguem um ordenamento no sentido de Vontade de organização.  Podemos então perceber um ordenamento que se inicia da singularidade do Big Bang até a formação de grandes caldeirões estelares que forjaram os elementos para a formação de massas resfriadas planetárias e alguma, em especial a nossa, situada em algum lugar insignificante da ponta da Via Láctea, na posição “Cachinhos de Ouro” (nem tão quente e nem tão fria) da órbita em relação ao Sol, onde na sua massa planetária, num meio líquido aquoso proveniente do espaço profundo, seres unicelulares puderam ser gerados através de processos eletroquímicos para formar os primeiros organismos vivos que deram origem a todos os seres existentes do planeta e uma atmosfera generosa que garante a sua sobrevivência e por consequência a sintetização pelos organismos da energia primordial para garantia de nutrição e reprodução da vida de forma exuberante, em quase negação e no sentido inverso da entropia mecânica e da segunda Lei da Termodinâmica.

O ordenamento do Universo pode ser verificado em todos os fenômenos estelares. Como afirmam os premiados cientistas Hans A. Bethe e Gerald Brown, ambos os pesquisadores detentores do prêmio Nobel de Física sobre suas descobertas de como as supernovas explodem. No Universo quando o combustível nuclear das grandes estrelas se esgota, seu núcleo colapsa e implode em milissegundos. O rebote subsequente do núcleo gera uma onda de choque tão intensa que ejeta a maior parte da massa estelar em forma de gases. Neste caso uma implosão é transformada em explosão. Quando a explosão termina, a maior parte da massa da estrela já foi espalhada pelo espaço, e tudo o que resta no centro são suas cinzas densas e escuras. Em alguns casos elas podem até desaparecer em um buraco negro. Segundo as palavras dos dois estudiosos sobre o fenômeno: “Pode parecer que a implosão estelar é um processo caótico, mas na verdade é bem organizado. Toda a evolução da estrela ocorre em direção a condições mais ordenadas, ou de menor entropia.”

Segundo  estudiosos do assunto, a formação e existência de elementos mais pesados do que o ferro  no sistema solar, por exemplo, requerem uma entrada líquida de energia. Esses elementos pesados não parecem surgir dos fornos estelares; eles provavelmente foram sintetizados da explosão de uma supernova. Devido a considerável abundância desses elementos pesados em nosso sistema intui-se que o Sol é uma estrela de segunda geração, proveniente da condensação dos restos de matéria originados depois da explosão de uma estrela supernova. O nosso sistema solar, e com ele a Terra possivelmente formou-se há cerca de 4,5 bilhões de anos a partir deste evento cósmico de proporções inimagináveis.

Estrutura da Partícula
de um Elemento Complexo 

No processo de evolução biológica alguns pretendem tratarem-se as mutações genéticas de eventos frutos do acaso, processos aleatórios, sem ordenamento nem objetivo. Embora estes cientistas reconheçam a existência de restrições moleculares a determinadas alterações. Mas sabemos que as mutações genéticas podem ser geradas, entre outras coisas, pela radiação cósmica, incontáveis partículas oriundas do espaço profundo, que os corpos dos seres vivos estão expostos diariamente, com sua potência reduzida e filtrada pela presença da camada de proteção gerada pelo campo magnético terrestre e que interpenetram os corpos de todos os seres da biosfera. É interessante imaginar que nesta luta pela sobrevivência às condições planetárias só os mais aptos conseguem manter sua progênie. E também sabemos que existe uma propensão para a cada vez maior especialização de cada organismo a partir do seu meio, o que torna-o mais sensível às mudanças do seu habitat e passível de extinção.

Conforme já mencionado, o nosso planeta possivelmente formou-se a 4,5 milhões de anos, e as rochas onde foram encontrados os primeiros fósseis microscópicos foram formadas há 3,2-3,4 bilhões de anos. O que chama a atenção dos estudiosos é a morfologia destes microfósseis já se assemelharem bastante à estrutura celular atual. Formas ainda mais simples de vida devem ter existido antes daquela época, e a maioria da evolução química ocorreu tendo tais formas como protagonistas. Tudo isto indica que a vida surgiu muito rapidamente na história da Terra, como se espera que uma reação química ocorra, desde que se forneçam as condições apropriadas do meio dizem os cientistas.

Então podemos conceber que foram as forças do Universo as responsáveis pelo mundo que habitamos e pela nossa própria existência e a dos outros seres vivos. Lembrando que a gravidade permitiu a vida sobre a superfície planetária e o movimento de nosso planeta ao redor do Sol em órbita concêntrica perfeita, o eletromagnetismo protegeu os seres vivos dos raios cósmicos e forneceu uma blindagem ao planeta contra as radiações solares e foram as primitivas descargas atmosféricas de alta intensidade que geraram a vida no caldo primário, a força nuclear fraca e a força nuclear forte deram a consistência necessária para a matéria densa e a matéria sutil interagirem e o resultado da interação destas forças promoveu a evolução das células no planeta dentro de um padrão organizado que propiciou a dinâmica da Criação.

Do Principio da Vontade Cósmica –

O processo da Criação foi constante e podemos deduzir  que a vida como um todo propõe um ordenamento maior da matéria. Mas podemos falar de uma Vontade Cósmica? Schopenhauer em sua obra: “Sobre a Vontade da Natureza” analisando a sincronicidade de suas teorias sobre a Vontade com as de um sábio taoista chinês do século XII, Tchu Si, ou Tchu Fu Tze, sistematizador da filosofia chinesa, que discorreu sobre o conceito chinês de Tien, o Céu, como abstração do que pode ser interpretado pela filosofia milenar daquele povo:

“Pode parecer que Tien designe ‘o maior entre os grandes’ ou ‘acima de tudo o que é grande no mundo’: no entanto, a indeterminação de sua significação no uso linguístico é incomparavelmente maior do que a expressão céu nas línguas europeias (...)”
“Tchu Fu Si diz: ‘que no céu haja uma pessoa (isto é, um ente sábio) que julga e decide sobre os crimes é algo que não deve ser dito de modo algum; mas, por outro lado, tampouco se pode afirmar que não há nada que exerça um controle supremo sobre estas coisas.”
O mesmo sábio ao ser questionado acerca do “Coração Celeste”, se ele seria cognoscível ou não, ao que respondeu: “Não se pode dizer que o espírito da natureza seja destituído de inteligência, mas ele não tem nenhuma semelhança com o pensar humano (...) “
“Segundo uma de suas autoridades, tien é denominado regente ou soberano (tshu) devido ao conceito do poder supremo, e uma outra (autoridade) expressa-se a respeito do seguinte modo: ‘se o céu (tien) não tivesse um espírito dotado de intenção, ocorreria que da vaca nascesse um cavalo e que o pessegueiro carregasse flores de pera. – Por outro lado é dito que o espírito celeste é dedutível daquilo que é a espécie humana! ”(Tradutor inglês utilizou-se do ponto de exclamação para expressar seu espanto – Nota do Autor)”

Sem cair na armadilha da simplificação panteísta podemos imaginar uma complexidade crescente do ordenamento do Universo em uma dimensão muito acima de nossa capacidade atual de entendimento e longe do cabedal de conhecimentos que nossa física propõe explicar. Não pretendo aqui afirmar da existência de uma metafísica, ou do sobrenatural além do conhecimento humano, mas informar sobre os fenômenos naturais que compõem todo o espectro da Criação, pois todas as manifestações do ordenamento cósmico são naturais, mas muitas estão além do nosso atual entendimento.

Os filósofos da atualidade sabem que existe uma linha evolucionária comum que vai da matéria cósmica forjada nas estrelas à vida e da vida para a complexidade da volição da mente como unidade em cada estrutura celular senciente. Alguns padrões comuns se repetem e garantem um aumento de autoconsciência em diferentes níveis e domínios da evolução da matéria, um espelhamento, em cada individuo, numa relação radial e em escala ascendente. A Vontade Primordial, em substituição ao conceito de espírito, é acionada, em um sistema de distribuição ramificado e formador de organismos complexos e estanques que são a biodiversidade planetária, o que intensifica as probabilidades de sucesso da sua ação organizadora em direção a um objetivo conhecido pelo Todo, mas desconhecido para cada individuo que compõem a rede. Um processo aparentemente infinito para o individuo que carrega em seu interior como herança, o fio da existência, a ilusão de uma ligação particular de imortalidade e que está sempre presente como potência em todo o estágio finito de cada organismo, mas que se torna mais disponível a cada salto evolucionário em gerações sucessivas.

Podemos acompanhar fenômeno semelhante na evolução tecnológica que na verdade é uma expressão da vontade humana em complexidade crescente. O homem cria a sua semelhança seus engenhos que na verdade são extensões dele mesmo e inferências da cultura e do comportamento humano. Alguns cientistas acreditam que as mudanças tecnológicas afetam o genoma humano e agregam novas potencialidades para cada nova geração.

Mas o individuo não chega ao mundo desprovido de uma bagagem. Seu potencial em relação ao mundo exterior já vem programado conforme a época em que ele passa a fazer parte do seu meio, não como agente passivo, mas sim como agente transformador de sua geração. O inconsciente coletivo é um processo dinâmico e induz uma evolução que se traduz no aumento da complexidade cultural e a uma visão mais universal da sociedade onde está inserido.

A filosofia, entretanto não possui a mesma dinâmica para todas as classes sociais. As massas vivem e acreditam ainda num mundo comandado pelas teorias filosóficas da escolástica tomista, das crenças judaico-cristãs sincretizadas com suas culturas originais e regionais. Acreditam no antropocentrismo, em imagens milagrosas personalizadas e no mágico. As crenças evangélicas, seitas que absorvem multidões de indivíduos comuns em escala crescente, são na verdade cultos aos demônios e nada tem a ver com as escrituras do cristianismo ortodoxo. Misturam sua fé com crenças de prosperidade material e deturpam os rituais de origem africana que sincretizam para atrair indivíduos incultos que compõem as massas mais pobres do Ocidente, numa falsa remissão de males provocados pelos anseios individuais criados por uma sociedade cada vez mais competitiva e excludente do capitalismo selvagem. O homem comum encontra alento no exorcismo e no transe auto infligido ou induzido pelo pastor. São práticas xamânicas milenares empregadas para seduzir os ingênuos e controlar os inocentes em troca de dízimos e oferendas financeiras.

Esta aparente contradição, o descompasso entre as teorias filosóficas pós-escolástica e o que acredita o povo comum, possui uma dinâmica própria. Caso tentássemos levar conhecimentos sobre Nietzsche, Hegel, Kant, Schopenhauer, Darwin e outros filósofos para esclarecimento das multidões, elas teriam apenas inquietude e aversão. E ainda pior seria tentar descortinar para o homem comum conhecimentos sobre as recentes descobertas da física quântica, o que, com certeza, colocaria em cheque tudo aquilo que ele acredita ser real.

Por outro lado ao afirmar-se a ideia de uma vida após a vida. Um paraíso além da morte, o homem comum deixa de perceber que seu destino final e o da humanidade está diretamente ligado à Terra. É desse planeta onde ele vive e extrai sua subsistência e será de onde seus descendentes em futuras gerações irão também viver. O culto a Eros e Tanátos, gerador dos conhecidos conflitos freudianos sobre fertilidade, procriação e morte, no entanto persistem velados no inconsciente da fé na visão interior do homem comum em seu cotidiano.

A Revolução da Filosofia Transcendente pode criar uma nova forma de levar o entendimento do Universo para este homem comum. Velhos paradigmas devem ser combatidos e abandonados para que o ser humano possa dar um novo salto evolutivo em direção da autossuficiência e da sustentabilidade planetária. Enquanto as multidões imaginarem uma falsa recompensa no porvir "post morten" nunca teremos uma visão objetiva do meio ambiente nem uma ação que permita uma revolução interior do homem comum em direção à sustentabilidade como filosofia de massa.

Ken Wilber em sua obra: “Uma Breve História do Universo” ao ser questionado sobre as grandes tradições espirituais da humanidade estabelece dois campos distintos de crenças. O caminho ascendente, puramente transcendental e do outro mundo, que é geralmente puritano, ascético, iogue, e tem uma tendência para desvalorizar ou até mesmo negar o corpo, os sentidos, a sexualidade, a Terra, a carne. Esse caminho busca a salvação num reino que não pertence a este mundo e considera a manifestação da Samsara como algo ilusório e do mal e assim anseia a sair totalmente da roda. Para os que anseiam a ascensão, qualquer tipo de descida pode ser visto como ilusório ou até mesmo do mal. O caminho da ascensão glorifica o Todo, não as Partes, o Vazio, não a Forma, o Céu, não a Terra.

O caminho descendente segue, portanto em direção contrária. É o caminho deste mundo, e glorifica as Partes, não o Todo. Ele exalta a Terra, o corpo, os sentidos, e a sexualidade. Esse caminho identifica até o Espírito com o corpo sensório, com Gaia, com a manifestação, e percebe no nascer do Sol e da Lua todo o Espírito que uma pessoa pode almejar. É um caminho puramente imanente e despreza tudo o que seja transcendental. Na verdade, para todos os adeptos do caminho descendente, qualquer forma de ascensão é vista como algo do mal.

O confronto entre estas duas correntes do Espírito nos últimos dois mil anos sempre foi brutal e sangrento. Assim os seus crentes na verdade nunca entendem o que pretende a Suprema Vontade Universal, o Tao ou qualquer outro nome que defina o caminho. Quando alguma facção acredita entender o caminho correm rios de sangue. No Ocidente, afirma Wilber, desde os tempos de Agostinho a Copérnico, temos um ideal puramente ascendente, do mundo do além. A salvação final e a libertação da alma não poderiam ser encontradas neste corpo, na Terra, nesta vida. Isto quer dizer que a vida do individuo pode ser perfeita, mas tudo pode se tornar mais interessante ainda quando ele morrer, quando for para o outro mundo.

Então com o advento da modernidade e da pós-modernidade ocorreu uma profunda inversão. Os ascendentes sofreram um ocaso enquanto os descendentes tomaram a dianteira. Esta época passou a ser governada pelos descendentes, por uma cosmovisão descendente, ou melhor, “uniforme”, isto é, a ideia que o mundo sensório, empírico e material é o único que existe. Não existe nenhum potencial superior ou mais profundo disponível para o “ser”. Nenhum estágio superior de consciência, por exemplo. Nesta concepção existe apenas o que podemos ver com nossos sentidos ou pegar com nossas mãos. É um mundo restrito e privado de qualquer tipo de energia ascendente, totalmente vazio de qualquer transcendência. Para os descendentes qualquer tipo de ascensão ou transcendência é visto como uma crendice mal encaminhada, na melhor das hipóteses, ou como o demônio na pior.

Logo, no mundo descendente em que vivemos hoje, dentro desta rede terrena de informações instantâneas, e inseridos em uma realidade simplória, de superfícies monótonas e enfadonhas pobres de conteúdo, onde impera a tecnologia de ponta e o obsoletismo forçado, seja com  Capitalismo ou Marxismo, industrialismo consumista ou ecologia radical, em todos os casos, a divindade subliminar imposta pelo marketing globalizante, pode ser registrada com nossos sentidos, emulada com falsos sentimentos altruístas e mordida com nossos dentes até o esgotamento final de sua forma de deus mercado.

Ao recortar o Universo em suas partes preferidas, ascendentes e descendentes estão apenas contribuindo para a brutalidade desta guerra na tentativa insana de converterem e coagirem cada grupo oposto, compartilhando suas doenças particulares e promovendo o sectarismo.

As tradições não duais do Oriente e Ocidente podem ser o Caminho para resgatar o equilíbrio perdido e integrar o Transcendente e o Imanente, o Todo e as Partes, o Vazio e a Forma, nirvana e samsara, o Céu e a Terra, o Ascendente e o Descendente numa nova compreensão do Universo. É na união de ambas as correntes que reside a harmonia, e não no confronto em uma guerra brutal. Somente quando Ascensão e Descensão estão interligadas é que podem ser salvos ambos os caminhos. E aqueles cientistas, religiosos, filósofos que não contribuem para esta união e confundem em suas respectivas áreas de atuação os meios da Criação, com seus fins e de como a Vida surgiu até a evolução da senciência no planeta, destroem a única Terra que têm, como também se privam do único Céu que podem abraçar.
   

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

O Caminho do Guerreiro




"Julga o covarde que a vida não acaba / Se longe da luta ficar / Mas os anos não lhe darão tréguas / Mesmo se a guerra o poupar...”  (Antigo verso Viking)

Muitos acreditam no Ocidente que as práticas Zen e Taoistas estão exclusivamente relacionadas ao quietismo de monges meditando em templos exóticos longe das realidades da vida e ao neófito só resta a complacência e o despojar-se da fibra guerreira. Poucos sabem entretanto que a maioria das artes marciais do Oriente surgiram do devotamento à contemplação e ao crescimento do praticante como Caminho de orientação em direção à iluminação ou pelo menos ao atingimento do equilíbrio necessário para o combate do guerreiro ao duelar ou no campo de batalha.

Muitos confundem com a complacência o equilíbrio pessoal dos praticantes do Zen em função da calma interior expressa pelo monge ao defrontar-se com o perigo iminente e sua imolação sem o temor da morte, caso ela seja necessária. A influência direta da filosofia Zen sobre os guerreiros orientais, principalmente na China e no Japão serve de contraponto entre as raízes asiáticas da cultura indo-ariana e seus reflexos na conduta do guerreiro ocidental.

O combate, com suas múltiplas dificuldades, exige máximo foco do guerreiro. Essas exigências podem fazer com que o individuo aprenda muito, porque deverá descobrir-se e encarar a si próprio e as suas fraquezas. Onde não existe o dualismo pode desenvolver-se o espírito do combatente.

Talvez a maior das exigências para o ego seja enfrentar a finitude da vida. Todos, cedo ou tarde, temos que enfrentar a mortalidade. No Ocidente, a morte continua sendo um dos grandes tabus e deixa o ego a descoberto, essa parcela do individuo que se apega firmemente às coisas, que tenta paralisar o fluxo da vida e classificá-la em pequenos recipientes estanques, completamente aterrorizado com a própria mortalidade. O medo é a essência que faz  o ego querer reter a morte ou apressar o seu fatal destino; ou a sua simples ideia faz com que surja este terror interior paralisante. De fato o medo que se experimenta perante a ideia da morte não é provocado por uma situação determinada, mas está escondido no interior do individuo e por vezes se manifesta. Sempre está presente na vida dos seres, por baixo de toda a rigidez, de toda a trivialidade do cotidiano e das pequenas neuroses, e da grande neurose que faz o individuo ter a ilusão de ser isolado do meio e das outras pessoas a sua volta. Este medo que é a pedra angular onde se assenta toda esta rígida estrutura da vida com suas ilusões nas conquistas mundanas e na manutenção da disciplina em uma sociedade servil revela-se perante a morte e é então que temos de encará-lo e tentar assumi-lo de frente.

O medo da morte é o maior obstáculo que encontra o guerreiro. Este medo produz paralisia, rigidez, ou faz perder o controle motor do corpo. Sentindo medo o individuo pode ficar petrificado ou, tomado de pânico, pode reagir de forma cega e irracional. Qualquer destas reações, num momento crucial do combate, provocará com certeza a morte, mesmo do mais bem preparado combatente. É uma sensação particular que não resolve tanto no momento da batalha como na vida do individuo, pois a morte é um fato inexorável da vida que não pode ser controlado.


Guerreiros pré-históricos lutam pela Vaca Sagrada. Os de uma pena defendem sua propriedade contra os de três penas em uma batalha sangrenta. A arte foi encontrada nas regiões desérticas da África Setentrional, gravada na rocha há muitos milênios
            
A tradição do guerreiro no Ocidente, originada na remota pré-história nas estepes da Ásia nos últimos cem mil anos, possui seus primeiros registros históricos no período da Antiguidade Clássica, dos heróis cantados e consagrados na Ilíada de Homero, nos relatos de Heródoto, Xenofonte, nas obras latinas como a Eneida de Virgílio ou os mitos de formação de Roma, com a lenda dos Horácios e Curiácios em seu combate mortal pelas cores das suas respectivas cidades estado. Muitos relatos descrevem como resolviam suas diferenças ou praticavam suas conquistas e como as castas de guerreiros faziam sua profissão de fé para garantir o domínio sobre as castas consideradas inferiores, dos lavradores, indispensáveis para plantar a terra, composta pela mão de obra dos povos vencidos e escravizados, e garantir assim suas conquistas com o sustento na produção dos alimentos e víveres, excedentes necessários para as campanhas sazonais empreendidas.

A prática de dizimar os vencidos após a batalha, isto é, matar dez por cem dos guerreiros vencidos em um sacrifício ao deus da guerra, costume comum entre as tribos indo arianas, demonstra a necessidade de garantir o excedente de recurso humano como mão de obra escrava para o plantio. Com certeza uma evolução da prática mais arcaica de extermínio puro e simples de toda uma população que, entretanto, não deixou de ocorrer quando o inimigo antes da derrota oferecia uma grande resistência na batalha ou no romper do cerco da cidade estado, como ato supremo de terror e vingança.

Mas o nexo da nossa análise é dissecar a personalidade desse guerreiro arquetípico e sua profissão de fé, já que a prática da guerra, o morticínio, e suas naturais e sangrentas consequências sempre foram amparados por uma tradição religiosa de homens escolhidos por vocação ou nascimento que acreditavam que só atingiriam a plenitude da imortalidade de suas almas junto ao deus caso sucumbissem na pira do combate e ofereciam em sacrifício suas vidas na batalha para garantir a imortalidade da alma, tema de fé recorrente em todas as civilizações que formaram impérios e forjaram os mitos dos heróis. Das estepes asiáticas até o continente americano o guerreiro tinha garantido seu passe para o céu caso morresse em batalha ou fosse imolado como prisioneiro de guerra ao deus do vencedor ou como vitima da antropofagia ritual.

O guerreiro como definição é um ser solitário, inexoravelmente dedicado ao combate pessoal, à tensão singular, uma ampliação da percepção que afronta e sublima, no momento supremo do combate com seu oponente; um duelo enfrentado sob o efeito de uma espécie de embriaguez que lhe desdobra, como uma possessão, e que é bastante conhecida entre as culturas guerreiras antigas, sobretudo em sua fase primitiva. 

Na cultura germânica o termo Ferg ou Wut é empregado para definir esse estado mental. A palavra antiga nórdica da qual deriva o nome de Odhinn, ôdhr (...) corresponde ao alemão Wut, “furor”, e ao gótico wôds, “possuído”: como substantivo, designa tanto a embriaguez, a excitação, o gênio poético ( conforme o anglo-saxão Wôth, “canto”) como o movimento terrível do mar, do fogo, do temporal; como adjetivo, significa “violento”, “furioso” e, também, “rápido”.

Todos os termos similares indo-arianos estão relacionados com esse conceito de força inspirada, como a da poesia, ou aludem ao arrebatamento profético: o latino; vates, por exemplo, ou o irlandês antigo Faith, além, naturalmente, dos gregos manía e mantéia. Dom sobre-humano e também possessão mântica, a mística loucura do guerreiro se torna, em si mesma, a medida do favor celeste, o embate entre dois exércitos como um duelo judicial, no qual, os deuses decidem e indicam qual deles tem reconhecidos os direitos. (Os deuses dos alemães - Dumézil). Os germanos algumas vezes interrogavam a sorte por meio do duelo: acreditando efetivamente que a divindade presidia a todas as ações do homem, e que ela devia manifestar sua vontade e a justiça por um milagre evidente. Daí surgiu todos os juízos de Deus em uso em toda a Europa medieval.

”Há ainda outra espécie de agouros pelos quais procuram saber o êxito das guerras importantes. Prendem um homem da nação com quem devem ter a guerra, e fazem-no combater com um dos seus, armados cada um segundo o uso pátrio. A vitória de um ou de outro significa na guerra a vitória da nação a que pertence” (X – A Germania – Tácito)

O valor era medido pelos seus compromissos bélicos e a desonra maior abandonar o campo de batalha. O contingente guerreiro formava no combate em cunha. Os germanos costumavam executar uma retirada simulada, para incitar a perseguição do inimigo para depois novamente acometer ao ataque. Recolhiam sempre que possível os corpos dos seus mortos durante a batalha. O guerreiro germano considerava como a maior desonra perder o escudo e aquele que comete tal infâmia não é permitido assistir aos sacrifícios, nem tomar parte das assembleias; ao que sobrevive a guerra termina mitigando sua desonra enforcando-se.

Segundo Tácito suas mulheres eram tratadas em alta conta, pois conseguiam restaurar batalhas perdidas fazendo retornar ao ataque os guerreiros já em fuga. Fazem ver o perigo da escravidão iminente a qual temem os guerreiros pelo amor às esposas. Eram espectadoras dos combates e durante a batalha levam exortações e mantimentos aos que combatem. Quando retornam mostram as feridas às mães e companheiras que as contam cheias de orgulho ou chupam seu sangue para curá-las. Desta forma tinham mais confiança nas tribos que ofereciam por reféns donzelas nobres. Acreditavam que existia nas mulheres alguma santidade como provedoras, e por isso não deixavam de  consultar suas profecias nem de ouvir seus conselhos. Na época de Vespasiano, uma entre muitas, a heroína Veleda foi por muitos germanos considerada uma divindade. E em épocas anteriores prestaram culto a Aurinia e a muitas outras mulheres guerreiras adoraram com honras de deusas.

A elite guerreira era composta dos Berserkers, que literalmente significa casacos de urso, segundo o mito eram homens que tinham a faculdade de se metamorfosearem em ursos, dotados de força extraordinária e eram invencíveis quando estavam enfurecidos. Alguns estudiosos acreditam que bebiam uma poção de cogumelos alucinógenos para aumentar sua ferocidade, o que é considerado improvável segundo outros pesquisadores em função da perda da capacidade bélica ao intoxicar-se a mente do guerreiro. É o soma, a poção mágica dos antigos deuses indo-arianos, que era ingerido e garantia a ferocidade das divindades contam os mitos. Mas não existem vestígios históricos desses hábitos entre os guerreiros germanos. É mais provável que através de rituais milenares de contemplação desenvolvessem a capacidade de absorver todo o seu potencial combativo dentro de uma estrutura de irmandade fechada e de um rito iniciático de mistérios que envolvia o sacrifício humano. O urso, um magnifico animal onívoro, sempre foi cultuado desde a mais remota pré-história e representa a força em sua essência bruta.

Todos os anos os germanos celebravam no Outono, no estio e no Inverno, três grandes cerimonias, nas quais imolavam condenados, cativos e alguns cavalos brancos, o que lembram os ritos similares dos povos indo-arianos, citas, hindus e persas e demais outros povos oriundos das estepes asiáticas. O sangue era recolhido em tigelas e um pontífice aspergia com ele a multidão, a quem se distribuía cerveja e a carne palpitante dos cavalos num simulacro de antropofagia velada. Uma festa mais solene tinha lugar, além disso, de nove em nove anos na Escandinávia, e nessa cerimonia degolavam noventa e nove homens, com outros tantos galos, cães e cavalos.
         
Dentro da tradição céltica vamos encontrar esse contexto do furor guerreiro na lenda do Ulster Irlandês que relata o iniciático embate do célebre herói Cuchulainn. Muito jovem ainda o herói com seu carro de guerra puxado por um cavalo vai até a fronteira de seu país, provoca e derrota os três irmãos filhos de Nechta, inimigos constantes dos ulatos, depois ainda tomado de um furor místico originado pelo combate retorna à capital de seu reino, onde as mulheres para acalmá-lo fazem exibições sensuais. Cuchulainn desdenha tais demonstrações, mas é aproveitado um momento de distração dele para que os ulatos possam subjuga-lo e mete-lo numa cuba com água fria que depois sempre será mantida próxima, quando ocorram outros combates, e assim não apresente perigo para os seus, sem que perca o dom do furor na batalha contra os inimigos. Seus personagens míticos, os heróis guerreiros de formação, são sempre superlativos, nas chacinas ou nos banquetes, numa certa tendência a sempre mostrar sempre mais.

Ao fim de sua saga Cuchulainn é derrotado por suas crenças em relação aos interditos e permissões que como guerreiro era obrigado a seguir. A armadilha surgiu na vida do herói irlandês como uma vingança em um banquete traiçoeiro. Sua vida de guerreiro, cuja a força sobrenatural e suas virtudes sempre andavam em par com as proibições terminantes, ou geasa, que era obrigado a obedecer para manter sua força extraordinária. Uma de suas proezas maiores foi a morte de Calatin, o Bravo e seus 27 filhos. A viúva de Calatin, a rainha Medb, teve sêxtuplos postumamente, três filhos e três filhas, que juraram vingança contra Cuchulainn. Medb reuniu então as quatro províncias da Irlanda e invadiu a terra de Cuchulainn. A grande carnificina do Mag Muirthemne começou. Sem importar-se com os maus augúrios, o herói acorreu à batalha. No caminho ele encontrou as três filhas de Medb, que assavam um cachorro num espeto de freixo. O herói viu-se entre duas de suas geasa, uma que lhe vedava passar por um fogão sem provar da comida que estava sendo preparada, e a outra que lhe proibia comer a carne de cão em função do seu nome, que significa “O Cão de Chulainn”. Apanhado nesse dilema fatalista, por fim aceitou um pedaço do cão. Imediatamente sua fortuna, e seu vigor foram embora e ele acabou morto pelos inimigos em um combate sangrento.

A armadilha do guerreiro neste caso é depender sua força sobrenatural de um dom sobrenatural na perseguição constante e observância de seu tabu. Ao descumprir os interditos ele fica a mercê dos inimigos, mas mesmo assim segue seu destino com fatalismo e luta até o fim mesmo prevendo a possibilidade de sua derrota iminente.
   
Os banquetes propiciados pelos reis tinham importância fundamental para destacar a importância dos guerreiros que eram seus aliados. Os prêmios recebidos são sempre naturais de sociedades que cultivam o mito do herói. Os celtas não eram exceção. Estes povos tinham uma paixão desmedida pela bebida e comida abundante. Seus príncipes eram enterrados com provisões e vinho trazido de grandes distâncias. A bebida de produção local era a cerveja. O prato favorito a carne de javali, assada ou cozida num grande caldeirão, com certeza era o simulacro ideal do inimigo morto pela combatividade desse tipo de caça que substituía o ritual do banquete canibal. Considerava-se na Irlanda que para um campeão, a medida por excelência era um porco inteiro. A dose ou porção destinada ao campeão era motivo de disputas entre os convivas e levava a combates ali mesmo no banquete.
  
O guerreiro celta, segundo as descrições que temos de suas vestes, variava de aspecto e roupagens segundo a origem da tribo ou região a que pertenciam. Alguns usavam calções ou calças compridas e capas leves. Os gaesatae, guerreiros que viviam além dos alpes e seguiam as velhas tradições tribais, exibiram-se nus à frente da primeira linha na batalha de Télamon em 225 a.C. contra os romanos segundo registrou Políbio. Nesse combate os romanos deram fim à supremacia gaulesa no Norte da península itálica onde este povo tinha se estabelecido tardiamente. Os guerreiros desnudos tinham por único adorno um torque no pescoço e braceletes de ouro. Nessa época as espadas dos guerreiros a pé tinham se tornado pesadas e largas e serviam somente para dar cutiladas. Os guerreiros tinham armamentos irregulares, nem todos dispunham de adagas curtas, e alguns usavam um ou dois dardos. Utilizavam um escudo longo com os lados direitos com pontas arredondadas, ou então era em formato oval, feito de madeira com saliências, ou mais raramente de rebordo de ferro, ou ocasionalmente feitos de vime. Os gaesatae, que em celta significa lanceiros, foram trazidos para auxiliar as tribos que tinham se estabelecido no Norte da península. Era uma força separada de todos os laços tribais; semelhantes aos corpos de guerreiros mais tarde conhecidos na Irlanda como fiana, que passavam uma vida errante de combates. Sua aparição em combate totalmente desnudos, sem outro equipamento que as armas era um costume arcaico entre os celtas. O costume não obedecia a uma mera bravata, como imaginavam os romanos; era uma invocação da proteção mágica e constituía uma prática que também já tivera grande voga na Grécia e na Itália em tempos imemoriais. Tratava-se de um ritual de batalha que concedia à nudez um poder de imunização contra os ferimentos e a morte, que infelizmente nesse combate, apesar da bravura dos contendores, não surtiu o efeito mágico esperado. Perderam 40 mil homens ao se defrontarem com um exército regular e profissional que não possuía a mesma tradição no combate floreado.

Outro costume que remonta a antropofagia ritual pré-histórica e suas origens remotas nas estepes da Ásia era o da decapitação dos inimigos e o de pendurarem as cabeças deles nos arreios de seus carros, para as exibirem eventualmente em casa, ou em santuários sagrados. Ou de fazerem taças para beber nos crâneos, costume difundido entre celtas, germanos e outros povos indo arianos.  Com isso detinha o vencedor em escravidão o espírito do morto vencido, e obtinham mais prestígio entre os seus iguais, ou ainda utilizavam os crâneos em suas cerimonias sazonais de fertilidade.
              
Os princípios que governam as sociedades contemporâneas teriam parecidos tão ímpios quanto ridículos aos guerreiros celtas. As elevadas exigências que eles mantinham em suas empresas eram, contudo, envolvidas na exaltação mística. Os celtas procuravam na guerra outra coisa além do lucro ou da satisfação do orgulho, ou simplesmente o apaziguamento de uma fúria natural e de um gosto inato pelo sangue derramado. É preciso ler a história de Arjuna no Bhagavad-Gitã, para compreender. Abatendo o corpo de um inimigo, ou perdendo a própria vida, o guerreiro não toca as almas no seu luminoso destino dos bravos. Uma derrota era aos olhos de Brennn, o chefe, seu próprio fracasso e lhe fazia perder a honra com a perda da fortuna (Lucky), que significava ao seu tempo a perfeição guerreira. Ele se dava a morte, ou era sacrificado ao deus pelos pares, em companhia dos seus fiéis escudeiros como faziam os samurais nipônicos.

É por esta razão que o desertor, aquele que fugia ao combate e abandonava os companheiros, era o mais culpado dos homens. Considerado pelos demais como a mais hedionda figura, pela quebra da palavra dada. Nenhum castigo era suficiente para punir sua falta. Decepavam lhe as mãos, depois o enterravam até a cintura. Em seguido servia de alvo às flechas e para terminar era coberto por uma fogueira para aniquilar a parte de seu corpo que permanecia acima da terra.

Julio Cesar relata como combatiam os celtas em sua obra sobre a Guerra Gálica:
“Eis a maneira como pelejam dos carros. Correm com eles a princípio por toda a parte, atirando dardos, e desordenando as mais das vezes as fileiras hostis só com o aterrorizar dos cavalos e estrepidar das rodas; introduzindo-se depois pelos esquadrões de cavalaria, saltam dos carros e combatem a pé. Os cocheiros, no entanto retiram-se aos poucos da refrega, e colocam os carros de modo que, quando se vêm apertados pelo inimigo, têm os essedários (os que combatiam dos carros de guerra) pronta retirada para os seus. Assim apresentam eles na batalha: a mobilidade de cavaleiros com a firmeza de peões, e tanto se adestram com o uso do exercício cotidiano, que nas mesmas ladeiras e precipícios habituam-se a conter os cavalos à desfilada, governá-los com facilidade e desviá-los a correr pelo temão, firmar-se no jugo, e tornar dali aos carros com rapidez extrema.”  (Livro IV – parág. XXXIII)

Equipado com um espadim ligeiro de ferro, perfurante, além de uma adaga para o corpo a corpo e de dardos, o senhor da guerra celta era levado pelo seu cocheiro numa veloz carreta de guerra de duas rodas, puxada por uma parelha de cavalos pequenos. Certos chefes de maior importância e riqueza exibiam elmos em forma de barrete, ou cônicos alongados feitos de bronze. Seus carros eram ricamente adornados com bronze e ferro em suas partes, rodas e bridões. Conforme afirmam os testemunhos da época o objetivo primário do guerreiro sobre rodas era correr na extensão ou em direção à linha inimiga para inspirar terror à vista, tanto lançando os dardos ou outros projéteis, como fazendo uma barulheira terrível com gritos de guerra, toques de trompa e pancadas dos lados dos carros, que se infiltravam pelos flancos ou pela retaguarda. Os guerreiros desciam então das carretas, que o cocheiro mantinha a postos para a retirada, caso necessário, enquanto o campeão desmontado, com os dardos ou a espada desembainhada, avançava para desafiar um do inimigo. O desafio era lançado, dentro de um ritual próprio em que se jactavam das próprias proezas e de sua linhagem, num canto de guerra próprio de seu clã. Nesse momento criava-se um frenesi. Nos combates intertribais parece que o corpo principal das tropas só entrava em combate depois desta fase do duelo individual, e talvez somente se um dos lados tivesse se certificado do êxito num conflito generalizado.

O contato com exércitos regulares obrigou a mudança das táticas no campo e a empenhar todas as forças combatentes deixando de lado aos poucos os rituais de batalha. As práticas arcaicas do desafio individual e do duelo entre campeões lembram as cenas da Ilíada, como de fato os celtas eram seus herdeiros diretos dessa tradição que surge dos primórdios dos tempos dos guerreiros pré-históricos que já há muito desaparecera entre os gregos e romanos.

Nos muitos combates entre as legiões romanas e as hordas de celtas e germanos, considerados bárbaros e indisciplinados, os últimos infligiram derrotas e aniquilamentos notáveis aos primeiros, geralmente quando conseguiam atrair ou emboscar os romanos longe de seus acampamentos fortificados, como no caso da legião reforçada de Sabino em 54 a.C. e as três legiões de Varus em 9 d.C. Quaisquer que fossem as desculpas de Júlio Cesar, fica claro que os bárbaros pintados de azul, os insulares da Bretanha defenderam sua ilha eficazmente e com valor contra o assédio dos conquistadores, a elite do exército romano. As táticas de ataque e emboscada que os bretões rapidamente adotaram após terem sido derrotados em batalhas formais eram tão problemáticas para os romanos que um século se passou após a retirada de Cesar antes que Roma fizesse outra tentativa de conquista.
                    
Os gregos da época homérica teriam compreendido bem o sentido de vida dos celtas. Com seus combates singulares em meio às batalhas, de corpo quase nu à frente de suas linhas de guerreiros. O confronto titânico entre Aquiles e Heitor cantado em versos como eterna inspiração do herói, o último representando o guerreiro mortal em confronto com o super homem semidivino, filho da ninfa Tétis, imbatível, e mesmo assim insistindo no combate cruento e contrapondo sua humanidade e dando sua vida até a última gota de sangue, sua total e inexorável derrota para honrar eternamente a sua polis. Preferia o guerreiro grego em seus primórdios auxiliar a natureza confiando na própria força recorrendo a “uma luta aberta, visível e leal”. Contudo a elaboração da civilização e o ceticismo grego com o tempo os fizeram valerem-se da mêtis, aquela astuta prudência que era uma das suas características preferidas. Nos séculos posteriores, quando seus sábios já discursavam nos pórticos das ágoras, ao praticarem a guerra, os gregos tinham Aquiles como modelo, mas se comportavam frequentemente como Ulisses. O mundo grego continuou a debater sobre a relação entre o útil e o honesto na guerra até o final do séc. V. Era considerada desonrosa entre os Lacedemônios a vitória conseguida com um ardil. Criticavam a Lisandro, um dos seus maiores generais, suas vitórias conquistadas a partir do engano e da mentira; e da aplicação de toda a arte da trapaça para atingir seus objetivos no campo de batalha. Lisandro replicava para seus detratores: “quando não basta a pele do leão para se cobrir, deve-se costurar nela a pele da raposa” – uma afirmação que define a mudança na insuficiente estratégia na guerra, do areté, ou valor tradicional de fazer o combate. Cerca do ano 730 a.C. a falange como formação de combate de infantaria foi introduzida no mundo helênico. A luta em formação cerrada era mais eficiente do que o combate singular entre campeões comum nos tempos arcaicos da Idade das Trevas como os celebrados na obra de Homero. Era antes impraticável tal estratégia quando o custo de uma armadura de metal estava apenas ao alcance dos mais ricos e era de uso exclusivo da nobreza com seus carros de guerra. A substituição do bronze pelo ferro mais barato, iniciada na fase da migração dos povos e concluída na Idade das Trevas colocou ao alcance do agricultor médio o equipamento bélico necessário que antes era monopólio de uma pequena aristocracia. O grande aumento no número de guerreiros possibilitou à polis sua supremacia sobre o campo e a ampliação da área agricultável necessária para manter alimentada a crescente população urbana. Fez valer a supremacia do metal em substituição ao guerreiro ancestral, um campeão que ia à guerra num carro puxado por cavalos e formava desde a infância uma casta privilegiada pela mais eficiente formação de falange de infantaria, cuja a virtude não estava na proeza individual do guerreiro, mas no exercício da disciplina do cidadão soldado da polis e no esprit de corps. Isto provocou uma mudança radical nos objetivos dos combates que agora envolviam estratégia nas manobras e astúcia do strategos.

Na nova guerra de falange o escudo redondo era utilizado para servir ao moral militar. Na formação de ordem unida, a parte esquerda do escudo de um soldado protegia seu companheiro que estava ao lado à esquerda, e ao enfrentar o ataque frontal do inimigo era mais seguro manter a formação do que permitir romper as fileiras; o soldado que dela se afastava perdia a proteção que lhe vinha da direita, além de deixar desprotegido o camarada da direita. Mais difícil ainda era fugir com o escudo preso ao braço e era ponto de honra não abandoná-lo no campo de batalha. “Espero que meu filho volte com seu escudo, ou deitado sobre ele”, diziam as mães espartanas. O corpo do bravo morto no campo de batalha era levado, orgulhosamente, sobre o escudo que lhe pertencera. Esse instrumento bélico, que era símbolo de bravura era conhecido como “o armamento” (hóplon)  e o guerreiro da falange era denominado como “portador do escudo” ou hoplita.

A formação do soldado hoplita e o “sprit de corps” superaram o campeão guerreiro e aristocrata, que tentou manter sua supremacia imitando dos nômades que incursionaram nos séculos VIII e VII vindos das estepes eurasianas seu mais novo recurso que era utilizar os cavalos como montarias, ao invés de utilizá-los em carros. Mas o uso eficiente da cavalaria só iria surgir na época de Alexandre, cerca de quatro séculos depois.

Com o advento do cidadão soldado grego e depois com o apogeu do legionário romano, o soldado profissional, o guerreiro na acepção da palavra sofreu um ocaso momentâneo no continente europeu eclipsado pela formação da falange que exigia mais disciplina e menos valor individual. Entretanto seus valores foram sincretizados por estas novas formações para induzir a ferocidade necessária em combate e a manutenção de certos interditos naturais, frutos da tradição criada na vida das casernas. Ele iria retornar das estepes em épocas subsequentes e sempre ameaça as fronteiras dos impérios que tentaram estabelecer-se no mundo até os dias de hoje.


  
 A Arte do Guerreiro Zen –

O guerreiro oriental possui uma tradição onde a filosofia e a técnica mescla-se para atingir um resultado de eficiência bélica inigualável. Muito dessa tradição perdeu-se no Ocidente com a cristianização dos povos bárbaros. A civilização criada no extremo ocidental da eurásia separou o sagrado do profano e gerou no soldado o conflito natural entre dever e religião. Isso não impediu a crueldade dos cruzados contra os povos pagãos, nem o massacre dos povos ameríndios travestido de catequização, mas causou o fim dos guerreiros como instituição bélica no Ocidente.

As artes marciais tiveram um tratamento cerimonioso no Oriente e sua prática foi elevada a mais alta filosofia. A diferença que separa uma arte marcial de sua técnica compreende entre outras coisas o entendimento do guerreiro com seu armamento, como uma extensão natural de seu corpo, com o controle absoluto de sua respiração.

Entre todos os guerreiros orientais conhecidos podemos recordar os exemplares conselhos de Musashi, o grande espadachim samurai que dedicou sua vida ao exercício das práticas do Kendo e por fim dedicou-se exclusivamente ao Zen, passando seus últimos dias vivendo em uma gruta em busca de paz interior. Aos vinte e um anos lutou contra a família Yoshioka, a famosa escola de instrutores de esgrima da casa Ashikaga. Seijiro, o primeiro da família Yoshioka a enfrentar Musashi, empunhava uma espada de boa qualidade, enquanto o samurai invencível portava uma pobre espada de madeira. Com um violento ataque Musashi derrubou Seijiro e pôs-se a espancá-lo furiosamente. Envergonhado o perdedor cortou seu penteado de samurai e recolheu-se para tratar dos muitos ferimentos.

Os ensinamentos deste episódio são evidentes: a)Nem sempre o mais bem aparelhado para as exigências do confronto conseguirá levar a melhor no ataque; b) uma boa ofensiva deve ser seguida por uma continuidade a fim de que o oponente não possa se recompor; c) nunca deixe o adversário impor regras ou condições apenas por que está bem aparelhado; d) ataque sem vacilar e sem pena.

Após essa estrondosa vitória permaneceu na capital e com isso irritou o clã Yoshioka. O segundo em importância na família, Densichiro, desafiou-o para um duelo. Musashi deliberadamente atrasou-se para o confronto e segundos depois do início do combate quebrou o crânio do oponente, que morreu imediatamente.

Novo ensinamento: conheça suas armas e as técnicas do inimigo. Não reduza o potencial dos seus ataques e, sobretudo, numa luta mortal, não tenha misericórdia.

Uma terceira luta foi proposta, dessa vez contra Hansichiro, filho de Seijiro, um jovem campeão. Desta vez, variando a tática, Musashi chegou mais cedo ao local do duelo e escondeu-se. No horário combinado o rapaz chegou com um grupo de seus partidários bem armados. Musashi aguardou até que pensassem que ele tivesse se evadido do duelo e com sua velocidade habitual matou o desafiante. A seguir, utilizando a sua técnica das duas espadas, abriu caminho causando ferimentos e mortes entre os pares do rapaz e fugiu.

A outra lição fundamental: Aja de forma inesperada, surpreenda o adversário, cause-lhe danos nos fronts mais importantes e se não for possível aniquilá-lo fuja. Mantendo-se vivo sempre será possível vencê-lo em outra oportunidade. Na disciplina oriental se não for possível vencer o inimigo de uma só vez, deve-se amedrontá-lo, fazer com que tenha medo da própria sombra, encurralá-lo, privá-lo de referenciais, fazê-lo tomar decisões incorretas e desnecessárias e, sobretudo o fazer enfraquecer-se pelo desgaste, pelas falhas de logística, pelo consumo incorreto de recursos, pelo ataque a falsas frentes, e cercá-lo o melhor possível deixando-lhe saídas desejadas de forma intencional para garantir o sucesso do ataque final.

Em 1605, após derrotar Oku Hozoim, monge discípulo de Hoin Inei, Musashi passou algum tempo estudando as técnicas dos sacerdotes lanceiros e desfrutando de sua hospitalidade e sabedoria.

O Kendo, ou Caminho da Espada é um ensinamento introduzido entre os samurais associado às práticas do Zen na Arte da Esgrima. Incentivado pela filosofia confucionista e taoista, ambas de origem chinesa, cultura que influenciou profundamente o sistema Tokugawa, e pelo culto xintoísta, a religião nativa do Japão, os tribunais de guerra do período Kamakura ao período Muromachi encorajaram o seu austero estudo entre os samurais como ensinamento associado à arte da guerra. No Zen não há elaborações evidentes de ordem moral; ele visa diretamente a verdadeira natureza das coisas. Não existem cerimônias nem ensinamentos sobre dogmas religiosos: a recompensa do Zen é intimista e absolutamente pessoal. O objetivo de Iluminação, ou desvelamento da verdadeira natureza do ser no Zen não significa uma mudança de comportamento no sentido judaico-cristão, a partir do que não pode ser traçada uma analogia ou paralelo com os ensinamentos religiosos ocidentais em relação ao sentido de pecado ou culpa, mas de uma percepção da natureza da Vida no sentido existencial cotidiano. O ponto final é o começo e a grande virtude é a simplicidade. Por exemplo, o ensinamento secreto da escola Kendo Itto Ryu, Kiriotoshi, é a primeira entre cento e poucas técnicas. É o ensinamento conhecido como “Ai Uchi”, que significa golpear o oponente na hora em que ele golpeia. É a alocação perfeita do tempo, o foco ausente de ira. Significa tratar o oponente como um convidado de honra. Indica também abandonar o apego pela vida ou eliminar o medo da morte para poder atingir o objetivo supremo de vencer o inimigo.



A primeira técnica é também a última, em escala ascendente, iniciante e mestre comportam-se com a mesma obrigação. O conhecimento da prática é um círculo completo. Na obra de estratégia de Musashi, seu primeiro capitulo é a Terra, como base, do Kendo e do Zen, e o último capitulo é o Vazio, ideia que transcende o conceito de “nada”. Os ensinamentos do Kendo se aproximam dos ataques ferozes dos Koans Zen proferidos pelos monges para seus discípulos. Questões são formuladas e respostas devem ser dadas sem a concepção racionalista comum, pois é necessário romper os paradigmas e evitar o lugar comum no enfoque da tática da esgrima que em última análise deve surpreender o oponente. Deixar para trás as práticas exclusivamente técnicas e buscar uma compreensão e uma nova abordagem do empunhar o bastão de bambu ou a espada longa, o discípulo é gradualmente levado à compreensão e à percepção do fio da existência como realidade única do momento presente. O discípulo pratica milhares de golpes, ou apenas um, com total excelência, dia e noite, até chegar ao desapego na hora do movimento fatal, assim ele busca o vazio da mente que evita a turbação dos pensamentos e sentidos, enquanto o esgrimista comum, sem o treino correto diverge e divaga perdendo seu objetivo e buscando estabelecer um referencial de conduta de sentimentos e valores na dicotomia infinita dos opostos. Ele treina até a espada tornar-se a “não-espada” e a intenção, independente do objetivo, tornar-se a “não intenção”, em busca do movimento circular perfeito, sem máculas, inteligência corporal pura. O primeiro ensinamento elementar torna-se o mais alto conhecimento, e o mestre busca a perfeição inatingível, a partir deste treino contínuo do simples do movimento, como prece diária e exercício de meditação.

Os monges Zen causaram profunda impressão aos duros samurais pelo seu despojamento em relação a mortalidade e o ascetismo, como negação da vida mundana. Bodhidarma é o fundador do budismo da meditação, do Zen (Do chinês Ch'an), que surgiu no Japão por volta do ano de 520. Como os monges eram frequentemente atacados por bandoleiros em suas peregrinações nas estradas, ele ensinou-os a combater, um combate de monges frente a um combate de bandidos. Bodhidarma ensinava que a natureza do Buda é inata, que ela ocorre através do Satori, que é uma brusca tomada de consciência da realidade última do ser. Ele meditou longamente diante de uma parede branca. Os elementos se esclareceram mutuamente, percebeu-se que sua meditação não era uma fantasia e que seus combates, longe de representarem simples empurrões, ou  suas armas apenas simples ferramentas de monges agricultores eram eficientes e mortais, mas não eram utilizadas com o objetivo de promover massacres de indefesos. Bodhidarma tinha o percebimento para a quietação do seu espírito a partir da própria imobilização na meditação e também de imobilizar o oponente em combate: ele conhecia a arte de harmonizar e converter.

Os Ocidentais utilizam as artes marciais orientais como se fossem apenas esportes, para orientar combates, organizar competições, mas será que as conhecem realmente ? De fato as artes marciais podem ser utilizadas apenas como um esporte de combate. É a diferença entre o boxe, um esporte que sempre foi conduzido como uma luta de gladiadores, chamado de “nobre arte” para satisfação de seus donos, e o Caratê Do, prática marcial que utiliza as mãos, mas que não pode ser apenas reduzida a uma técnica de pugilato. Pode-se, portanto praticar uma arte marcial sem nunca suspeitar de seu papel iniciático. No entanto, apesar de ambas as práticas utilizarem as mãos, no final do combate quem pratica o Caratê Do corretamente encontra-se interiormente em paz. Ambas as práticas buscam a vitória, apesar das diferenças entre a técnica e a filosofia de objetivos, embora não vivam os praticantes suas artes da mesma forma. Não é por tratar-se de uma prática que busca o aprimoramento espiritual que o CaratêDo não pretenda ser eficaz. Um golpe é sempre um golpe e deve ser objetivo no sentido de vencer o oponente. Esse conceito destrói o senso comum ocidental que liga as coisas do espírito ao intangível, à futilidade, à impotência ou passividade do ser.

Os japoneses distinguem aquilo que se origina do Caminho (Do) daquilo que se origina da Técnica (Jitsu). “É preciso que se faça a distinção fundamental entre o Caminho do Tiro (com arco e flecha), KyuDo ou ShaDo, e a Técnica do Tiro, o KyuJitsu. O KyuDo é criado para a realidade existente entre o alvo e o si-mesmo, enquanto o KyuJitsu da época feudal é antes de tudo o manejamento da arma visando a morte do inimigo”, afirma o mestre Anzawa (1887-1970) O Caminho neste caso, que em chinês é denominado Tao foi por semelhança e mudança de pronúncia chamado Do pelos mestres japoneses. O Caminho é um fim em si mesmo, ele representa a própria arte na sua totalidade em direção ao aprimoramento interior do discípulo. Sua prática é iniciática e espiritual.



Seus fundadores e mestres portanto baseiam-se em experiências espirituais. Das práticas respiratórias tiram sua energia. Praticam sua arte de forma vigorosa para tornar a mente limpa, como uma purificação contra as hesitações comuns da vida, em oposição a um intelectualismo exagerado de acadêmicos relacionado com o constante conflito interno dos opostos que rouba a energia do lutador e compromete o resultado final da luta. O Caminho, como abstração da mente, não tem limites, é Fonte Inesgotável e ato contínuo da existência.

A arte marcial como prática do guerreiro funciona em outro plano além daquele da história documental, do racionalismo cartesiano ou mesmo da simples experiência mística. A arte marcial é praticada e recomeça sempre que um discípulo busca um mestre num processo contínuo de uma via de mão dupla. O importante é a experiência revivida. A paz interior almejada não significa inércia, pelo contrário, o guerreiro está sempre pronto para o ataque e a defesa, se conserva sempre alerta, como um monge que medita mantendo sua vigília constante, mas guarda sua serenidade conforme sua natureza, estável, inalterável, sem desejos opostos, nem a mente dispersa em muitas direções. Concentrado, coordenando cada músculo sem esforço desnecessário e mantendo a tensão correta ao manifestar qualquer movimento em direção do oponente. Encadeando cada ataque do adversário a um contra-ataque efetivo.

Ser flexível é a vantagem fundamental para alcançar o resultado esperado e seguir o adversário até conseguir promover contra ele um cerco  completo. O mimetismo do guerreiro pode operar sobre outro plano. Os movimentos tanto no Kung Fu, no AikiDo, no CaratêDo exigem ás vezes que se imite um animal. A rapidez do leopardo, a garra do gato, o espírito da serpente, a ligação do guerreiro com as forças da natureza são imprescindíveis. Por não ter uma mente racional, o animal move-se livre e espontaneamente quando ataca e quando se defende, o que evidencia sua inteligência natural. O individuo sintoniza com a sensibilidade dos animais tomados como modelo, harmonizando seu equilíbrio interior no confronto com o oponente, como as ondas do mar fazem de forma constante ao enfrentar e erodir as areias da praia e as duras rochas, sem vacilos, nem elocubrações mentais desnecessárias.



Neste sentido a arte marcial pertence ao domínio da iniciação. A importância da respiração confirma o fato. O guerreiro não respira para viver ou tomar folego, ele respira para aumentar sua energia, para misturar sua energia com a energia cósmica, impregnar-se com o pneuma universal. Quando inspira ele apreende igualmente o sutil, que é força. Uma potência que é necessária captar por sintonia com o Todo.
As emoções perturbadoras como o ódio não tem lugar dentro desse Caminho. Ao golpear o guerreiro adquire respeito do oponente, ao vencer torna-se modesto. Nenhuma animosidade pode permanecer no combate. Prevalecendo a vitória sobre o outro, o guerreiro vence a ele mesmo. A força de efetivar os combates ele na verdade almeja a paz.

A energia física se converte em mental e a energia mental em energia física. A concentração se faz ação e a ação se faz concentração. O pensamento e o gesto se tornam um só. Quando a concentração se torna perfeita o arqueiro lança sua flecha e o lutador desfere seu golpe. Não há mais “eu”, ação, ou mão. Simplesmente acontece. O espírito do guerreiro Zen simplesmente é, a vitória final aqui parece ilusória e vã.



O guerreiro Zen não pratica uma arte marcial. Ele atua na não ação. De fato sua principal atividade é a de não ter nenhuma atividade. Ele ataca sem atacar, em um movimento circular de defesa/ataque utiliza a força do adversário contra ele mesmo. A potência se volta contra aquele que a desenvolveu primeiro. Ao atacar, o adversário se expõe à perda. Sua energia dispendida se volta contra ele conforme o movimento inesperado e quase impossível do lutador atento desfere em retribuição o golpe mortal e definitivo. O guerreiro Zen obriga o adversário a ter que administrar a própria perda numa frágil e desastrada defensiva. Enquanto um perde, o outro conserva a energia, enquanto um triunfa o outro se esfalfa e já antevê a derrota iminente olhando em volta na busca de uma saída possível e assim perde o foco do combate.

A eficácia do guerreiro Zen é aquilo que os ocidentais consideram mais inútil: o instante, a concentração. Ele se centraliza, transforma-se a medida que é a flecha e o alvo ao mesmo tempo, ou ainda a mão, o golpe, a espada, o corpo do adversário. Ele é o Todo.


Numa sociedade de escravos só o guerreiro é de fato livre.



Bibliografia:

1) O Guerreiro, o Soldado e o Legionário - Giovanni Brizzi - Madras Edit. - 2003
2) Artes Marciais - Edições Del Prado - Madrid - 1997
3) O Livro dos Cinco Anéis - Miyamoto Musashi - Madras Edit. - 2004
4) O Esoterismo - Pierre A. Riffard - Edit. Mandarin - 1996
5) Guerra Gálica (De Bello Galico) - Julio Cesar - Ediouro
6) A Germania - Tácito - Edit. Livraria Educação Nacional - Porto - 1941