"Julga o
covarde que a vida não acaba / Se longe da luta ficar / Mas os anos não lhe
darão tréguas / Mesmo se a guerra o poupar...”
(Antigo verso Viking)
Muitos
acreditam no Ocidente que as práticas Zen e Taoistas estão exclusivamente
relacionadas ao quietismo de monges meditando em templos exóticos longe das
realidades da vida e ao neófito só resta a complacência e o despojar-se da
fibra guerreira. Poucos sabem entretanto que a maioria das artes marciais do
Oriente surgiram do devotamento à contemplação e ao crescimento do praticante
como Caminho de orientação em direção à iluminação ou pelo menos ao atingimento
do equilíbrio necessário para o combate do guerreiro ao duelar ou no campo de
batalha.
Muitos
confundem com a complacência o equilíbrio pessoal dos praticantes do Zen em
função da calma interior expressa pelo monge ao defrontar-se com o perigo
iminente e sua imolação sem o temor da morte, caso ela seja necessária. A influência
direta da filosofia Zen sobre os guerreiros orientais, principalmente na China
e no Japão serve de contraponto entre as raízes asiáticas da cultura
indo-ariana e seus reflexos na conduta do guerreiro ocidental.
O combate,
com suas múltiplas dificuldades, exige máximo foco do guerreiro. Essas
exigências podem fazer com que o individuo aprenda muito, porque deverá
descobrir-se e encarar a si próprio e as suas fraquezas. Onde não existe o
dualismo pode desenvolver-se o espírito do combatente.
Talvez a
maior das exigências para o ego seja enfrentar a finitude da vida. Todos, cedo ou tarde,
temos que enfrentar a mortalidade. No Ocidente, a morte continua sendo um dos
grandes tabus e deixa o ego a descoberto, essa parcela do individuo que se
apega firmemente às coisas, que tenta paralisar o fluxo da vida e classificá-la
em pequenos recipientes estanques, completamente aterrorizado com a própria
mortalidade. O medo é a essência que faz
o ego querer reter a morte ou apressar o seu fatal destino; ou a sua
simples ideia faz com que surja este terror interior paralisante. De fato o
medo que se experimenta perante a ideia da morte não é provocado por uma
situação determinada, mas está escondido no interior do individuo e por vezes
se manifesta. Sempre está presente na vida dos seres, por baixo de toda a
rigidez, de toda a trivialidade do cotidiano e das pequenas neuroses, e da
grande neurose que faz o individuo ter a ilusão de ser isolado do meio e das
outras pessoas a sua volta. Este medo que é a pedra angular onde se assenta
toda esta rígida estrutura da vida com suas ilusões nas conquistas mundanas e
na manutenção da disciplina em uma sociedade servil revela-se perante a morte e
é então que temos de encará-lo e tentar assumi-lo de frente.
O medo da
morte é o maior obstáculo que encontra o guerreiro. Este medo produz paralisia,
rigidez, ou faz perder o controle motor do corpo. Sentindo medo o individuo
pode ficar petrificado ou, tomado de pânico, pode reagir de forma cega e
irracional. Qualquer destas reações, num momento crucial do combate, provocará
com certeza a morte, mesmo do mais bem preparado combatente. É uma sensação
particular que não resolve tanto no momento da batalha como na vida do
individuo, pois a morte é um fato inexorável da vida que não pode ser
controlado.
A tradição
do guerreiro no Ocidente, originada na remota pré-história nas estepes da Ásia
nos últimos cem mil anos, possui seus primeiros registros históricos no período
da Antiguidade Clássica, dos heróis cantados e consagrados na Ilíada de Homero,
nos relatos de Heródoto, Xenofonte, nas obras latinas como a Eneida de Virgílio
ou os mitos de formação de Roma, com a lenda dos Horácios e Curiácios em seu
combate mortal pelas cores das suas respectivas cidades estado. Muitos relatos
descrevem como resolviam suas diferenças ou praticavam suas conquistas e como
as castas de guerreiros faziam sua profissão de fé para garantir o domínio
sobre as castas consideradas inferiores, dos lavradores, indispensáveis para
plantar a terra, composta pela mão de obra dos povos vencidos e escravizados, e garantir
assim suas conquistas com o sustento na produção dos alimentos e víveres,
excedentes necessários para as campanhas sazonais empreendidas.
A prática de
dizimar os vencidos após a batalha, isto é, matar dez por cem dos guerreiros
vencidos em um sacrifício ao deus da guerra, costume comum entre as tribos
indo arianas, demonstra a necessidade de garantir o excedente de recurso humano
como mão de obra escrava para o plantio. Com certeza uma evolução da prática
mais arcaica de extermínio puro e simples de toda uma população que,
entretanto, não deixou de ocorrer quando o inimigo antes da derrota oferecia
uma grande resistência na batalha ou no romper do cerco da cidade estado, como ato supremo de terror e vingança.
Mas o nexo
da nossa análise é dissecar a personalidade desse guerreiro arquetípico e sua
profissão de fé, já que a prática da guerra, o morticínio, e suas naturais e
sangrentas consequências sempre foram amparados por uma tradição religiosa de
homens escolhidos por vocação ou nascimento que acreditavam que só atingiriam a
plenitude da imortalidade de suas almas junto ao deus caso sucumbissem na pira
do combate e ofereciam em sacrifício suas vidas na batalha para garantir a
imortalidade da alma, tema de fé recorrente em todas as civilizações que
formaram impérios e forjaram os mitos dos heróis. Das estepes asiáticas até o
continente americano o guerreiro tinha garantido seu passe para o céu caso
morresse em batalha ou fosse imolado como prisioneiro de guerra ao deus do
vencedor ou como vitima da antropofagia ritual.
O guerreiro
como definição é um ser solitário, inexoravelmente dedicado ao combate pessoal,
à tensão singular, uma ampliação da percepção que afronta e sublima, no momento
supremo do combate com seu oponente; um duelo enfrentado sob o efeito de uma
espécie de embriaguez que lhe desdobra, como uma possessão, e que é bastante
conhecida entre as culturas guerreiras antigas, sobretudo em sua fase
primitiva.
Na cultura germânica o termo Ferg ou Wut é empregado para definir esse estado mental. A palavra antiga nórdica da qual deriva o nome de Odhinn, ôdhr (...) corresponde ao alemão Wut, “furor”, e ao gótico wôds, “possuído”: como substantivo, designa tanto a embriaguez, a excitação, o gênio poético ( conforme o anglo-saxão Wôth, “canto”) como o movimento terrível do mar, do fogo, do temporal; como adjetivo, significa “violento”, “furioso” e, também, “rápido”.
Todos os
termos similares indo-arianos estão relacionados com esse conceito de força
inspirada, como a da poesia, ou aludem ao arrebatamento profético: o latino; vates, por exemplo, ou o irlandês antigo
Faith, além, naturalmente, dos gregos
manía e mantéia. Dom sobre-humano e também possessão mântica, a mística
loucura do guerreiro se torna, em si mesma, a medida do favor celeste, o embate
entre dois exércitos como um duelo judicial, no qual, os deuses decidem e
indicam qual deles tem reconhecidos os direitos. (Os deuses dos alemães -
Dumézil). Os germanos algumas vezes interrogavam a sorte por meio do duelo:
acreditando efetivamente que a divindade presidia a todas as ações do homem, e
que ela devia manifestar sua vontade e a justiça por um milagre evidente. Daí
surgiu todos os juízos de Deus em uso em toda a Europa medieval.
”Há ainda outra espécie de agouros
pelos quais procuram saber o êxito das guerras importantes. Prendem um homem da
nação com quem devem ter a guerra, e fazem-no combater com um dos seus, armados
cada um segundo o uso pátrio. A vitória de um ou de outro significa na guerra a
vitória da nação a que pertence” (X – A Germania – Tácito)
O valor era
medido pelos seus compromissos bélicos e a desonra maior abandonar o campo de
batalha. O contingente guerreiro formava no combate em cunha. Os germanos
costumavam executar uma retirada simulada, para incitar a perseguição do
inimigo para depois novamente acometer ao ataque. Recolhiam sempre que possível
os corpos dos seus mortos durante a batalha. O guerreiro germano considerava
como a maior desonra perder o escudo e aquele que comete tal infâmia não é
permitido assistir aos sacrifícios, nem tomar parte das assembleias; ao que
sobrevive a guerra termina mitigando sua desonra enforcando-se.
Segundo
Tácito suas mulheres eram tratadas em alta conta, pois conseguiam restaurar
batalhas perdidas fazendo retornar ao ataque os guerreiros já em fuga. Fazem
ver o perigo da escravidão iminente a qual temem os guerreiros pelo amor às
esposas. Eram espectadoras dos combates e durante a batalha levam exortações e
mantimentos aos que combatem. Quando retornam mostram as feridas às mães e
companheiras que as contam cheias de orgulho ou chupam seu sangue para
curá-las. Desta forma tinham mais confiança nas tribos que ofereciam por reféns
donzelas nobres. Acreditavam que existia nas mulheres alguma santidade como
provedoras, e por isso não deixavam de
consultar suas profecias nem de ouvir seus conselhos. Na época de
Vespasiano, uma entre muitas, a heroína Veleda foi por muitos germanos
considerada uma divindade. E em épocas anteriores prestaram culto a Aurinia e a
muitas outras mulheres guerreiras adoraram com honras de deusas.
A elite
guerreira era composta dos Berserkers, que literalmente significa casacos de
urso, segundo o mito eram homens que tinham a faculdade de se metamorfosearem
em ursos, dotados de força extraordinária e eram invencíveis quando estavam
enfurecidos. Alguns estudiosos acreditam que bebiam uma poção de cogumelos
alucinógenos para aumentar sua ferocidade, o que é considerado improvável
segundo outros pesquisadores em função da perda da capacidade bélica ao
intoxicar-se a mente do guerreiro. É o soma, a poção mágica dos antigos deuses
indo-arianos, que era ingerido e garantia a ferocidade das divindades contam os
mitos. Mas não existem vestígios históricos desses hábitos entre os guerreiros
germanos. É mais provável que através de rituais milenares de contemplação
desenvolvessem a capacidade de absorver todo o seu potencial combativo dentro
de uma estrutura de irmandade fechada e de um rito iniciático de mistérios que
envolvia o sacrifício humano. O urso, um magnifico animal onívoro, sempre foi
cultuado desde a mais remota pré-história e representa a força em sua essência
bruta.
Todos os
anos os germanos celebravam no Outono, no estio e no Inverno, três grandes cerimonias, nas quais imolavam condenados, cativos e alguns cavalos brancos, o
que lembram os ritos similares dos povos indo-arianos, citas, hindus e persas e
demais outros povos oriundos das estepes asiáticas. O sangue era recolhido em
tigelas e um pontífice aspergia com ele a multidão, a quem se distribuía
cerveja e a carne palpitante dos cavalos num simulacro de antropofagia velada.
Uma festa mais solene tinha lugar, além disso, de nove em nove anos na
Escandinávia, e nessa cerimonia degolavam noventa e nove homens, com outros
tantos galos, cães e cavalos.
Dentro da
tradição céltica vamos encontrar esse contexto do furor guerreiro na lenda do
Ulster Irlandês que relata o iniciático embate do célebre herói Cuchulainn.
Muito jovem ainda o herói com seu carro de guerra puxado por um cavalo vai até
a fronteira de seu país, provoca e derrota os três irmãos filhos de Nechta,
inimigos constantes dos ulatos, depois ainda tomado de um furor místico
originado pelo combate retorna à capital de seu reino, onde as mulheres para
acalmá-lo fazem exibições sensuais. Cuchulainn desdenha tais demonstrações, mas
é aproveitado um momento de distração dele para que os ulatos possam subjuga-lo
e mete-lo numa cuba com água fria que depois sempre será mantida próxima,
quando ocorram outros combates, e assim não apresente perigo para os seus, sem
que perca o dom do furor na batalha contra os inimigos. Seus personagens
míticos, os heróis guerreiros de formação, são sempre superlativos, nas
chacinas ou nos banquetes, numa certa tendência a sempre mostrar sempre mais.
Ao fim de
sua saga Cuchulainn é derrotado por suas crenças em relação aos interditos e
permissões que como guerreiro era obrigado a seguir. A armadilha surgiu na vida
do herói irlandês como uma vingança em um banquete traiçoeiro. Sua vida de
guerreiro, cuja a força sobrenatural e suas virtudes sempre andavam em par com
as proibições terminantes, ou geasa, que
era obrigado a obedecer para manter sua força extraordinária. Uma de suas
proezas maiores foi a morte de Calatin, o Bravo e seus 27 filhos. A viúva de
Calatin, a rainha Medb, teve sêxtuplos postumamente, três filhos e três filhas,
que juraram vingança contra Cuchulainn. Medb reuniu então as quatro províncias
da Irlanda e invadiu a terra de Cuchulainn. A grande carnificina do Mag
Muirthemne começou. Sem importar-se com os maus augúrios, o herói acorreu à
batalha. No caminho ele encontrou as três filhas de Medb, que assavam um
cachorro num espeto de freixo. O herói viu-se entre duas de suas geasa, uma que lhe vedava passar por um
fogão sem provar da comida que estava sendo preparada, e a outra que lhe
proibia comer a carne de cão em função do seu nome, que significa “O Cão de
Chulainn”. Apanhado nesse dilema fatalista, por fim aceitou um pedaço do cão.
Imediatamente sua fortuna, e seu vigor foram embora e ele acabou morto pelos
inimigos em um combate sangrento.
A armadilha
do guerreiro neste caso é depender sua força sobrenatural de um dom
sobrenatural na perseguição constante e observância de seu tabu. Ao descumprir
os interditos ele fica a mercê dos inimigos, mas mesmo assim segue seu destino
com fatalismo e luta até o fim mesmo prevendo a possibilidade de sua derrota
iminente.
Os banquetes
propiciados pelos reis tinham importância fundamental para destacar a
importância dos guerreiros que eram seus aliados. Os prêmios recebidos são
sempre naturais de sociedades que cultivam o mito do herói. Os celtas não eram
exceção. Estes povos tinham uma paixão desmedida pela bebida e comida
abundante. Seus príncipes eram enterrados com provisões e vinho trazido de
grandes distâncias. A bebida de produção local era a cerveja. O prato favorito
a carne de javali, assada ou cozida num grande caldeirão, com certeza era o
simulacro ideal do inimigo morto pela combatividade desse tipo de caça que
substituía o ritual do banquete canibal. Considerava-se na Irlanda que para um
campeão, a medida por excelência era um porco inteiro. A dose ou porção
destinada ao campeão era motivo de disputas entre os convivas e levava a
combates ali mesmo no banquete.
O guerreiro
celta, segundo as descrições que temos de suas vestes, variava de aspecto e
roupagens segundo a origem da tribo ou região a que pertenciam. Alguns usavam
calções ou calças compridas e capas leves. Os gaesatae, guerreiros que viviam além dos alpes e seguiam as velhas
tradições tribais, exibiram-se nus à frente da primeira linha na batalha de
Télamon em 225 a.C. contra os romanos segundo registrou Políbio. Nesse combate
os romanos deram fim à supremacia gaulesa no Norte da península itálica onde
este povo tinha se estabelecido tardiamente. Os guerreiros desnudos tinham por
único adorno um torque no pescoço e braceletes de ouro. Nessa época as espadas
dos guerreiros a pé tinham se tornado pesadas e largas e serviam somente para
dar cutiladas. Os guerreiros tinham armamentos irregulares, nem todos dispunham
de adagas curtas, e alguns usavam um ou dois dardos. Utilizavam um escudo longo
com os lados direitos com pontas arredondadas, ou então era em formato oval,
feito de madeira com saliências, ou mais raramente de rebordo de ferro, ou
ocasionalmente feitos de vime. Os gaesatae,
que em celta significa lanceiros, foram trazidos para auxiliar as tribos que
tinham se estabelecido no Norte da península. Era uma força separada de todos
os laços tribais; semelhantes aos corpos de guerreiros mais tarde conhecidos na
Irlanda como fiana, que passavam uma
vida errante de combates. Sua aparição em combate totalmente desnudos, sem
outro equipamento que as armas era um costume arcaico entre os celtas. O
costume não obedecia a uma mera bravata, como imaginavam os romanos; era uma
invocação da proteção mágica e constituía uma prática que também já tivera
grande voga na Grécia e na Itália em tempos imemoriais. Tratava-se de um ritual
de batalha que concedia à nudez um poder de imunização contra os ferimentos e a
morte, que infelizmente nesse combate, apesar da bravura dos contendores, não
surtiu o efeito mágico esperado. Perderam 40 mil homens ao se defrontarem com
um exército regular e profissional que não possuía a mesma tradição no combate
floreado.
Outro
costume que remonta a antropofagia ritual pré-histórica e suas origens remotas
nas estepes da Ásia era o da decapitação dos inimigos e o de pendurarem as
cabeças deles nos arreios de seus carros, para as exibirem eventualmente em
casa, ou em santuários sagrados. Ou de fazerem taças para beber nos crâneos,
costume difundido entre celtas, germanos e outros povos indo arianos. Com isso detinha o vencedor em escravidão o espírito
do morto vencido, e obtinham mais prestígio entre os seus iguais, ou ainda
utilizavam os crâneos em suas cerimonias sazonais de fertilidade.
Os
princípios que governam as sociedades contemporâneas teriam parecidos tão
ímpios quanto ridículos aos guerreiros celtas. As elevadas exigências que eles
mantinham em suas empresas eram, contudo, envolvidas na exaltação mística. Os
celtas procuravam na guerra outra coisa além do lucro ou da satisfação do
orgulho, ou simplesmente o apaziguamento de uma fúria natural e de um gosto
inato pelo sangue derramado. É preciso ler a história de Arjuna no
Bhagavad-Gitã, para compreender. Abatendo o corpo de um inimigo, ou perdendo a
própria vida, o guerreiro não toca as almas no seu luminoso destino dos bravos.
Uma derrota era aos olhos de Brennn, o chefe, seu próprio fracasso e lhe fazia
perder a honra com a perda da fortuna (Lucky), que significava ao seu tempo a
perfeição guerreira. Ele se dava a morte, ou era sacrificado ao deus pelos
pares, em companhia dos seus fiéis escudeiros como faziam os samurais
nipônicos.
É por esta
razão que o desertor, aquele que fugia ao combate e abandonava os companheiros,
era o mais culpado dos homens. Considerado pelos demais como a mais hedionda
figura, pela quebra da palavra dada. Nenhum castigo era suficiente para punir
sua falta. Decepavam lhe as mãos, depois o enterravam até a cintura. Em seguido
servia de alvo às flechas e para terminar era coberto por uma fogueira para
aniquilar a parte de seu corpo que permanecia acima da terra.
Julio Cesar
relata como combatiam os celtas em sua obra sobre a Guerra Gálica:
“Eis a maneira como pelejam dos
carros. Correm com eles a princípio por toda a parte, atirando dardos, e
desordenando as mais das vezes as fileiras hostis só com o aterrorizar dos
cavalos e estrepidar das rodas; introduzindo-se depois pelos esquadrões de
cavalaria, saltam dos carros e combatem a pé. Os cocheiros, no entanto
retiram-se aos poucos da refrega, e colocam os carros de modo que, quando se
vêm apertados pelo inimigo, têm os essedários (os que combatiam dos carros de
guerra) pronta retirada para os seus. Assim apresentam eles na batalha: a
mobilidade de cavaleiros com a firmeza de peões, e tanto se adestram com o uso
do exercício cotidiano, que nas mesmas ladeiras e precipícios habituam-se a
conter os cavalos à desfilada, governá-los com facilidade e desviá-los a correr
pelo temão, firmar-se no jugo, e tornar dali aos carros com rapidez
extrema.” (Livro IV – parág. XXXIII)
Equipado com
um espadim ligeiro de ferro, perfurante, além de uma adaga para o corpo a corpo
e de dardos, o senhor da guerra celta era levado pelo seu cocheiro numa veloz
carreta de guerra de duas rodas, puxada por uma parelha de cavalos pequenos.
Certos chefes de maior importância e riqueza exibiam elmos em forma de barrete,
ou cônicos alongados feitos de bronze. Seus carros eram ricamente adornados com
bronze e ferro em suas partes, rodas e bridões. Conforme afirmam os testemunhos
da época o objetivo primário do guerreiro sobre rodas era correr na extensão ou
em direção à linha inimiga para inspirar terror à vista, tanto lançando os
dardos ou outros projéteis, como fazendo uma barulheira terrível com gritos de
guerra, toques de trompa e pancadas dos lados dos carros, que se infiltravam pelos
flancos ou pela retaguarda. Os guerreiros desciam então das carretas, que o
cocheiro mantinha a postos para a retirada, caso necessário, enquanto o campeão
desmontado, com os dardos ou a espada desembainhada, avançava para desafiar um
do inimigo. O desafio era lançado, dentro de um ritual próprio em que se
jactavam das próprias proezas e de sua linhagem, num canto de guerra próprio de
seu clã. Nesse momento criava-se um frenesi. Nos combates intertribais parece
que o corpo principal das tropas só entrava em combate depois desta fase do
duelo individual, e talvez somente se um dos lados tivesse se certificado do
êxito num conflito generalizado.
O contato
com exércitos regulares obrigou a mudança das táticas no campo e a empenhar
todas as forças combatentes deixando de lado aos poucos os rituais de batalha.
As práticas arcaicas do desafio individual e do duelo entre campeões lembram as
cenas da Ilíada, como de fato os celtas eram seus herdeiros diretos dessa
tradição que surge dos primórdios dos tempos dos guerreiros pré-históricos que
já há muito desaparecera entre os gregos e romanos.
Nos muitos
combates entre as legiões romanas e as hordas de celtas e germanos,
considerados bárbaros e indisciplinados, os últimos infligiram derrotas e
aniquilamentos notáveis aos primeiros, geralmente quando conseguiam atrair ou
emboscar os romanos longe de seus acampamentos fortificados, como no caso da
legião reforçada de Sabino em 54 a.C. e as três legiões de Varus em 9 d.C.
Quaisquer que fossem as desculpas de Júlio Cesar, fica claro que os bárbaros
pintados de azul, os insulares da Bretanha defenderam sua ilha eficazmente e
com valor contra o assédio dos conquistadores, a elite do exército romano. As
táticas de ataque e emboscada que os bretões rapidamente adotaram após terem
sido derrotados em batalhas formais eram tão problemáticas para os romanos que
um século se passou após a retirada de Cesar antes que Roma fizesse outra
tentativa de conquista.
Os gregos da
época homérica teriam compreendido bem o sentido de vida dos celtas. Com seus
combates singulares em meio às batalhas, de corpo quase nu à frente de suas
linhas de guerreiros. O confronto titânico entre Aquiles e Heitor cantado em
versos como eterna inspiração do herói, o último representando o guerreiro
mortal em confronto com o super homem semidivino, filho da ninfa Tétis,
imbatível, e mesmo assim insistindo no combate cruento e contrapondo sua
humanidade e dando sua vida até a última gota de sangue, sua total e inexorável
derrota para honrar eternamente a sua polis. Preferia o guerreiro grego em seus
primórdios auxiliar a natureza confiando na própria força recorrendo a “uma
luta aberta, visível e leal”. Contudo a elaboração da civilização e o ceticismo
grego com o tempo os fizeram valerem-se da mêtis,
aquela astuta prudência que era uma das suas características preferidas.
Nos séculos posteriores, quando seus sábios já discursavam nos pórticos das
ágoras, ao praticarem a guerra, os gregos tinham Aquiles como modelo, mas se
comportavam frequentemente como Ulisses. O mundo grego continuou a debater
sobre a relação entre o útil e o honesto na guerra até o final do séc. V. Era
considerada desonrosa entre os Lacedemônios a vitória conseguida com um ardil.
Criticavam a Lisandro, um dos seus maiores generais, suas vitórias conquistadas
a partir do engano e da mentira; e da aplicação de toda a arte da trapaça para
atingir seus objetivos no campo de batalha. Lisandro replicava para seus
detratores: “quando não basta a pele do leão para se cobrir, deve-se costurar
nela a pele da raposa” – uma afirmação que define a mudança na insuficiente
estratégia na guerra, do areté, ou
valor tradicional de fazer o combate. Cerca do ano 730 a.C. a falange como
formação de combate de infantaria foi introduzida no mundo helênico. A luta em
formação cerrada era mais eficiente do que o combate singular entre campeões
comum nos tempos arcaicos da Idade das Trevas como os celebrados na obra de
Homero. Era antes impraticável tal estratégia quando o custo de uma armadura de
metal estava apenas ao alcance dos mais ricos e era de uso exclusivo da nobreza
com seus carros de guerra. A substituição do bronze pelo ferro mais barato,
iniciada na fase da migração dos povos e concluída na Idade das Trevas colocou
ao alcance do agricultor médio o equipamento bélico necessário que antes era
monopólio de uma pequena aristocracia. O grande aumento no número de guerreiros
possibilitou à polis sua supremacia sobre o campo e a ampliação da área
agricultável necessária para manter alimentada a crescente população urbana.
Fez valer a supremacia do metal em substituição ao guerreiro ancestral, um
campeão que ia à guerra num carro puxado por cavalos e formava desde a infância
uma casta privilegiada pela mais eficiente formação de falange de infantaria,
cuja a virtude não estava na proeza individual do guerreiro, mas no exercício
da disciplina do cidadão soldado da polis e no esprit de corps. Isto provocou uma mudança radical nos objetivos
dos combates que agora envolviam estratégia nas manobras e astúcia do strategos.
Na nova
guerra de falange o escudo redondo era utilizado para servir ao moral militar.
Na formação de ordem unida, a parte esquerda do escudo de um soldado protegia
seu companheiro que estava ao lado à esquerda, e ao enfrentar o ataque frontal
do inimigo era mais seguro manter a formação do que permitir romper as
fileiras; o soldado que dela se afastava perdia a proteção que lhe vinha da
direita, além de deixar desprotegido o camarada da direita. Mais difícil ainda
era fugir com o escudo preso ao braço e era ponto de honra não abandoná-lo no
campo de batalha. “Espero que meu filho volte com seu escudo, ou deitado sobre
ele”, diziam as mães espartanas. O corpo do bravo morto no campo de batalha era
levado, orgulhosamente, sobre o escudo que lhe pertencera. Esse instrumento
bélico, que era símbolo de bravura era conhecido como “o armamento” (hóplon)
e o guerreiro da falange era denominado como “portador do escudo” ou
hoplita.
A formação
do soldado hoplita e o “sprit de corps” superaram
o campeão guerreiro e aristocrata, que tentou manter sua supremacia imitando
dos nômades que incursionaram nos séculos VIII e VII vindos das estepes
eurasianas seu mais novo recurso que era utilizar os cavalos como montarias, ao
invés de utilizá-los em carros. Mas o uso eficiente da cavalaria só iria surgir
na época de Alexandre, cerca de quatro séculos depois.
Com o
advento do cidadão soldado grego e depois com o apogeu do legionário romano, o
soldado profissional, o guerreiro na acepção da palavra sofreu um ocaso
momentâneo no continente europeu eclipsado pela formação da falange que exigia
mais disciplina e menos valor individual. Entretanto seus valores foram
sincretizados por estas novas formações para induzir a ferocidade necessária em
combate e a manutenção de certos interditos naturais, frutos da tradição criada
na vida das casernas. Ele iria retornar das estepes em épocas subsequentes e
sempre ameaça as fronteiras dos impérios que tentaram estabelecer-se no mundo
até os dias de hoje.
A Arte do Guerreiro Zen –
O guerreiro
oriental possui uma tradição onde a filosofia e a técnica mescla-se para
atingir um resultado de eficiência bélica inigualável. Muito dessa tradição
perdeu-se no Ocidente com a cristianização dos povos bárbaros. A civilização
criada no extremo ocidental da eurásia separou o sagrado do profano e gerou no
soldado o conflito natural entre dever e religião. Isso não impediu a crueldade
dos cruzados contra os povos pagãos, nem o massacre dos povos ameríndios
travestido de catequização, mas causou o fim dos guerreiros como instituição
bélica no Ocidente.
As artes
marciais tiveram um tratamento cerimonioso no Oriente e sua prática foi elevada
a mais alta filosofia. A diferença que separa uma arte marcial de sua técnica
compreende entre outras coisas o entendimento do guerreiro com seu armamento, como uma extensão
natural de seu corpo, com o controle absoluto de sua respiração.
Entre todos
os guerreiros orientais conhecidos podemos recordar os exemplares conselhos de
Musashi, o grande espadachim samurai que dedicou sua vida ao exercício das
práticas do Kendo e por fim dedicou-se exclusivamente ao Zen, passando seus
últimos dias vivendo em uma gruta em busca de paz interior. Aos vinte e um anos
lutou contra a família Yoshioka, a famosa escola de instrutores de esgrima da
casa Ashikaga. Seijiro, o primeiro da família Yoshioka a enfrentar Musashi,
empunhava uma espada de boa qualidade, enquanto o samurai invencível portava
uma pobre espada de madeira. Com um violento ataque Musashi derrubou Seijiro e
pôs-se a espancá-lo furiosamente. Envergonhado o perdedor cortou seu penteado
de samurai e recolheu-se para tratar dos muitos ferimentos.
Os
ensinamentos deste episódio são evidentes: a)Nem sempre o mais bem aparelhado
para as exigências do confronto conseguirá levar a melhor no ataque; b) uma boa
ofensiva deve ser seguida por uma continuidade a fim de que o oponente não
possa se recompor; c) nunca deixe o adversário impor regras ou condições apenas
por que está bem aparelhado; d) ataque sem vacilar e sem pena.
Após essa
estrondosa vitória permaneceu na capital e com isso irritou o clã Yoshioka. O
segundo em importância na família, Densichiro, desafiou-o para um duelo.
Musashi deliberadamente atrasou-se para o confronto e segundos depois do início
do combate quebrou o crânio do oponente, que morreu imediatamente.
Novo
ensinamento: conheça suas armas e as técnicas do inimigo. Não reduza o
potencial dos seus ataques e, sobretudo, numa luta mortal, não tenha
misericórdia.
Uma terceira
luta foi proposta, dessa vez contra Hansichiro, filho de Seijiro, um jovem
campeão. Desta vez, variando a tática, Musashi chegou mais cedo ao local do
duelo e escondeu-se. No horário combinado o rapaz chegou com um grupo de seus
partidários bem armados. Musashi aguardou até que pensassem que ele tivesse se
evadido do duelo e com sua velocidade habitual matou o desafiante. A seguir,
utilizando a sua técnica das duas espadas, abriu caminho causando ferimentos e
mortes entre os pares do rapaz e fugiu.
A outra
lição fundamental: Aja de forma inesperada, surpreenda o adversário, cause-lhe
danos nos fronts mais importantes e
se não for possível aniquilá-lo fuja. Mantendo-se vivo sempre será possível
vencê-lo em outra oportunidade. Na disciplina oriental se não for possível
vencer o inimigo de uma só vez, deve-se amedrontá-lo, fazer com que tenha medo
da própria sombra, encurralá-lo, privá-lo de referenciais, fazê-lo tomar
decisões incorretas e desnecessárias e, sobretudo o fazer enfraquecer-se pelo
desgaste, pelas falhas de logística, pelo consumo incorreto de recursos, pelo
ataque a falsas frentes, e cercá-lo o melhor possível deixando-lhe saídas
desejadas de forma intencional para garantir o sucesso do ataque final.
Em 1605,
após derrotar Oku Hozoim, monge discípulo de Hoin Inei, Musashi passou algum
tempo estudando as técnicas dos sacerdotes lanceiros e desfrutando de sua
hospitalidade e sabedoria.
O Kendo, ou
Caminho da Espada é um ensinamento introduzido entre os samurais associado às
práticas do Zen na Arte da Esgrima. Incentivado pela filosofia confucionista e
taoista, ambas de origem chinesa, cultura que influenciou profundamente o
sistema Tokugawa, e pelo culto xintoísta, a religião nativa do Japão, os
tribunais de guerra do período Kamakura ao período Muromachi encorajaram o seu
austero estudo entre os samurais como ensinamento associado à arte da guerra.
No Zen não há elaborações evidentes de ordem moral; ele visa diretamente a
verdadeira natureza das coisas. Não existem cerimônias nem ensinamentos sobre
dogmas religiosos: a recompensa do Zen é intimista e absolutamente pessoal. O
objetivo de Iluminação, ou desvelamento da verdadeira natureza do ser no Zen
não significa uma mudança de comportamento no sentido judaico-cristão, a partir
do que não pode ser traçada uma analogia ou paralelo com os ensinamentos
religiosos ocidentais em relação ao sentido de pecado ou culpa, mas de uma
percepção da natureza da Vida no sentido existencial cotidiano. O ponto final é
o começo e a grande virtude é a simplicidade. Por exemplo, o ensinamento
secreto da escola Kendo Itto Ryu, Kiriotoshi, é a primeira entre cento e poucas
técnicas. É o ensinamento conhecido como “Ai
Uchi”, que significa golpear o oponente na hora em que ele golpeia. É a
alocação perfeita do tempo, o foco ausente de ira. Significa tratar o oponente
como um convidado de honra. Indica também abandonar o apego pela vida ou
eliminar o medo da morte para poder atingir o objetivo supremo de vencer o
inimigo.
A primeira técnica é também a última, em escala ascendente, iniciante e mestre comportam-se com a mesma obrigação. O conhecimento da prática é um círculo completo. Na obra de estratégia de Musashi, seu primeiro capitulo é a Terra, como base, do Kendo e do Zen, e o último capitulo é o Vazio, ideia que transcende o conceito de “nada”. Os ensinamentos do Kendo se aproximam dos ataques ferozes dos Koans Zen proferidos pelos monges para seus discípulos. Questões são formuladas e respostas devem ser dadas sem a concepção racionalista comum, pois é necessário romper os paradigmas e evitar o lugar comum no enfoque da tática da esgrima que em última análise deve surpreender o oponente. Deixar para trás as práticas exclusivamente técnicas e buscar uma compreensão e uma nova abordagem do empunhar o bastão de bambu ou a espada longa, o discípulo é gradualmente levado à compreensão e à percepção do fio da existência como realidade única do momento presente. O discípulo pratica milhares de golpes, ou apenas um, com total excelência, dia e noite, até chegar ao desapego na hora do movimento fatal, assim ele busca o vazio da mente que evita a turbação dos pensamentos e sentidos, enquanto o esgrimista comum, sem o treino correto diverge e divaga perdendo seu objetivo e buscando estabelecer um referencial de conduta de sentimentos e valores na dicotomia infinita dos opostos. Ele treina até a espada tornar-se a “não-espada” e a intenção, independente do objetivo, tornar-se a “não intenção”, em busca do movimento circular perfeito, sem máculas, inteligência corporal pura. O primeiro ensinamento elementar torna-se o mais alto conhecimento, e o mestre busca a perfeição inatingível, a partir deste treino contínuo do simples do movimento, como prece diária e exercício de meditação.
Os monges Zen causaram profunda impressão aos duros samurais pelo seu despojamento em relação a mortalidade e o ascetismo, como negação da vida mundana. Bodhidarma é o fundador do budismo da meditação, do Zen (Do chinês Ch'an), que surgiu no Japão por volta do ano de 520. Como os monges eram frequentemente atacados por bandoleiros em suas peregrinações nas estradas, ele ensinou-os a combater, um combate de monges frente a um combate de bandidos. Bodhidarma ensinava que a natureza do Buda é inata, que ela ocorre através do Satori, que é uma brusca tomada de consciência da realidade última do ser. Ele meditou longamente diante de uma parede branca. Os elementos se esclareceram mutuamente, percebeu-se que sua meditação não era uma fantasia e que seus combates, longe de representarem simples empurrões, ou suas armas apenas simples ferramentas de monges agricultores eram eficientes e mortais, mas não eram utilizadas com o objetivo de promover massacres de indefesos. Bodhidarma tinha o percebimento para a quietação do seu espírito a partir da própria imobilização na meditação e também de imobilizar o oponente em combate: ele conhecia a arte de harmonizar e converter.
Os Ocidentais utilizam as artes marciais orientais como se fossem apenas esportes, para orientar combates, organizar competições, mas será que as conhecem realmente ? De fato as artes marciais podem ser utilizadas apenas como um esporte de combate. É a diferença entre o boxe, um esporte que sempre foi conduzido como uma luta de gladiadores, chamado de “nobre arte” para satisfação de seus donos, e o Caratê Do, prática marcial que utiliza as mãos, mas que não pode ser apenas reduzida a uma técnica de pugilato. Pode-se, portanto praticar uma arte marcial sem nunca suspeitar de seu papel iniciático. No entanto, apesar de ambas as práticas utilizarem as mãos, no final do combate quem pratica o Caratê Do corretamente encontra-se interiormente em paz. Ambas as práticas buscam a vitória, apesar das diferenças entre a técnica e a filosofia de objetivos, embora não vivam os praticantes suas artes da mesma forma. Não é por tratar-se de uma prática que busca o aprimoramento espiritual que o CaratêDo não pretenda ser eficaz. Um golpe é sempre um golpe e deve ser objetivo no sentido de vencer o oponente. Esse conceito destrói o senso comum ocidental que liga as coisas do espírito ao intangível, à futilidade, à impotência ou passividade do ser.
Os japoneses distinguem aquilo que se origina do Caminho (Do) daquilo que se origina da Técnica (Jitsu). “É preciso que se faça a distinção fundamental entre o Caminho do Tiro (com arco e flecha), KyuDo ou ShaDo, e a Técnica do Tiro, o KyuJitsu. O KyuDo é criado para a realidade existente entre o alvo e o si-mesmo, enquanto o KyuJitsu da época feudal é antes de tudo o manejamento da arma visando a morte do inimigo”, afirma o mestre Anzawa (1887-1970) O Caminho neste caso, que em chinês é denominado Tao foi por semelhança e mudança de pronúncia chamado Do pelos mestres japoneses. O Caminho é um fim em si mesmo, ele representa a própria arte na sua totalidade em direção ao aprimoramento interior do discípulo. Sua prática é iniciática e
espiritual.
Seus
fundadores e mestres portanto baseiam-se em experiências espirituais. Das
práticas respiratórias tiram sua energia. Praticam sua arte de forma vigorosa
para tornar a mente limpa, como uma purificação contra as hesitações comuns da
vida, em oposição a um intelectualismo exagerado de acadêmicos relacionado com
o constante conflito interno dos opostos que rouba a energia do lutador e
compromete o resultado final da luta. O Caminho, como abstração da mente, não
tem limites, é Fonte Inesgotável e ato contínuo da existência.
A arte
marcial como prática do guerreiro funciona em outro plano além daquele da
história documental, do racionalismo cartesiano ou mesmo da simples experiência
mística. A arte marcial é praticada e recomeça sempre que um discípulo busca um
mestre num processo contínuo de uma via de mão dupla. O importante é a
experiência revivida. A paz interior almejada não significa inércia, pelo
contrário, o guerreiro está sempre pronto para o ataque e a defesa, se conserva
sempre alerta, como um monge que medita mantendo sua vigília constante, mas
guarda sua serenidade conforme sua natureza, estável, inalterável, sem desejos
opostos, nem a mente dispersa em muitas direções. Concentrado, coordenando cada
músculo sem esforço desnecessário e mantendo a tensão correta ao manifestar
qualquer movimento em direção do oponente. Encadeando cada ataque do adversário
a um contra-ataque efetivo.
Ser flexível
é a vantagem fundamental para alcançar o resultado esperado e seguir o
adversário até conseguir promover contra ele um cerco completo. O mimetismo do guerreiro pode
operar sobre outro plano. Os movimentos tanto no Kung Fu, no AikiDo, no CaratêDo exigem ás vezes que se imite um
animal. A rapidez do leopardo, a garra do gato, o espírito da serpente, a
ligação do guerreiro com as forças da natureza são imprescindíveis. Por não ter uma mente racional, o animal move-se livre e espontaneamente quando ataca e quando se defende, o que evidencia sua inteligência natural. O individuo
sintoniza com a sensibilidade dos animais tomados como modelo, harmonizando seu
equilíbrio interior no confronto com o oponente, como as ondas do mar fazem de
forma constante ao enfrentar e erodir as areias da praia e as duras rochas, sem
vacilos, nem elocubrações mentais desnecessárias.
Neste
sentido a arte marcial pertence ao domínio da iniciação. A importância da
respiração confirma o fato. O guerreiro não respira para viver ou tomar folego,
ele respira para aumentar sua energia, para misturar sua energia com a energia
cósmica, impregnar-se com o pneuma universal. Quando inspira ele apreende
igualmente o sutil, que é força. Uma potência que é necessária captar por
sintonia com o Todo.
As emoções
perturbadoras como o ódio não tem lugar dentro desse Caminho. Ao golpear o
guerreiro adquire respeito do oponente, ao vencer torna-se modesto. Nenhuma
animosidade pode permanecer no combate. Prevalecendo a vitória sobre o outro, o
guerreiro vence a ele mesmo. A força de efetivar os combates ele na verdade
almeja a paz.
A energia
física se converte em mental e a energia mental em energia física. A concentração
se faz ação e a ação se faz concentração. O pensamento e o gesto se tornam um
só. Quando a concentração se torna perfeita o arqueiro lança sua flecha e o
lutador desfere seu golpe. Não há mais “eu”, ação, ou mão. Simplesmente
acontece. O espírito do guerreiro Zen simplesmente é, a vitória final aqui
parece ilusória e vã.
O guerreiro
Zen não pratica uma arte marcial. Ele atua na não ação. De fato sua principal
atividade é a de não ter nenhuma atividade. Ele ataca sem atacar, em um
movimento circular de defesa/ataque utiliza a força do adversário contra ele
mesmo. A potência se volta contra aquele que a desenvolveu primeiro. Ao atacar,
o adversário se expõe à perda. Sua energia dispendida se volta contra ele conforme o
movimento inesperado e quase impossível do lutador atento desfere em
retribuição o golpe mortal e definitivo. O guerreiro Zen obriga o adversário a
ter que administrar a própria perda numa frágil e desastrada defensiva.
Enquanto um perde, o outro conserva a energia, enquanto um triunfa o outro se
esfalfa e já antevê a derrota iminente olhando em volta na busca de uma saída
possível e assim perde o foco do combate.
A eficácia
do guerreiro Zen é aquilo que os ocidentais consideram mais inútil: o instante,
a concentração. Ele se centraliza, transforma-se a medida que é a flecha e o
alvo ao mesmo tempo, ou ainda a mão, o golpe, a espada, o corpo do adversário.
Ele é o Todo.
Numa
sociedade de escravos só o guerreiro é de fato livre.
Bibliografia:
1) O Guerreiro, o Soldado e o Legionário - Giovanni Brizzi - Madras Edit. - 2003
2) Artes Marciais - Edições Del Prado - Madrid - 1997
3) O Livro dos Cinco Anéis - Miyamoto Musashi - Madras Edit. - 2004
4) O Esoterismo - Pierre A. Riffard - Edit. Mandarin - 1996
5) Guerra Gálica (De Bello Galico) - Julio Cesar - Ediouro
6) A Germania - Tácito - Edit. Livraria Educação Nacional - Porto - 1941