"Há recessos desconhecidos na nossa mente que estão além do limiar da consciência relativamente construída. Não é correto designar esses recessos por subconsciência ou superconsciência. A palavra além é simplesmente usada porque é o termo mais conveniente para indicar o lugar. Mas o certo é que não há na nossa consciência nem além, nem debaixo nem em cima. A mente é um todo indivisível e não pode ser desagregada em pedaços" (D. T. Suzuki - Introdução ao Zen)

"Entrar na floresta sem mover a grama; entrar na água sem provocar nenhuma ondulação" (Zenrin Kushu)

segunda-feira, 7 de julho de 2014

O Tantra




O Tantra sempre esteve associado às práticas de magia, ao xamanismo e às antigas crenças de fertilidade dos povos Orientais. Os especialistas do Ocidente sempre tentaram associar as crenças tântricas com superstições incompreensíveis. Sua repulsão, em parte intelectual foi devido a acreditarem ter superado as crenças mágicas dos seus antepassados. E para complicar ainda mais seu estudo, o Tantra tem a faculdade de provocar a indignação moral de alguns e abalar as raízes da cultura judaico-cristã e budista tradicional. Os racionalistas pretendiam que nas doutrinas budistas, por exemplo, as práticas tântricas fossem consideradas uma degeneração da filosofia original. Em realidade os poderes psíquicos extraordinários e os milagres nunca foram postos em dúvida entre os budistas. Para aqueles que tinham capacidade necessária, o cultivo de tais poderes formava parte do programa de iluminação, enquanto para outros era uma benção discutível. A existência de muitas classes de espíritos incorpóreos e a realidade das forças mágicas, ambos eram considerados indiscutíveis e as crenças neles fazia parte de uma cosmologia comum.

É difícil estabelecer quando se iniciaram as práticas tântricas. Como se tratam de doutrinas herméticas, de mistérios, seus seguidores tem preferido manter seus segredos. As ideias ocultistas e esotéricas devem ter circulado em pequenos grupos de iniciados antes de alcançar a luz do dia. Como um sistema de crenças mais ou menos público, o Tantra adquiriu força depois do ano 500 ou 600 da nossa era. Entretanto suas raízes encontram-se nos primórdios da história humana, quando as sociedades agrícolas estavam mergulhadas nas práticas mágicas, nos sortilégios de feiticeiras e xamãs, nos rituais de sacrifícios humanos e nos cultos de fertilidade da deusa mãe e outras divindades ctônicas. O Tantra não é uma criação nova, senão o resultado da absorção de crenças primitivas nas tradições literárias hinduístas e depois sua mescla com a filosofia budista.

Como os hinduístas, os budistas distinguem um Tantra “da mão direita” e outro “da mão esquerda” No hinduísmo os “observadores da mão direita” (dakshinacarins) dão mais importância ao principio masculino no Universo enquanto os “observadores da mão esquerda” (vamacarins - das palavras vama, “reverso, oposto, esquerdo; mau, vil”, mas também “belo, agradável”, e cari , “aquele que vai, prossegue ou anda por um caminho” ) ao principio feminino. O termo “shaktismo” está associado ao Tantra da mão esquerda. O “shaktismo” hindu está ligado ao shivaismo. As doutrinas Shaiva tiveram grande influência no “shaktismo” budista. Shakti é a consorte divina, energia criadora, potência feminina. No shivaismo a adoração de Shakti está relacionada com a esposa de ShivaParvati ou Uma – denominada também de “A Grande Deusa”, e “A Grande Mãe”. Uma particularidade do shaktismo é que as divindades possuem uma manifestação benigna e uma manifestação terrível conforme o culto. A manifestação terrível de Parvati é Durga, A inacessível, ou Kali, a Negra.  As manifestações terríveis estão associadas à morte, à destruição, e à necromancia, aos sacrifícios animais e humanos. Ao mesmo tempo no shivaismo são inumeráveis as manifestações femininas relacionadas à Maha-Kali (Tempo Poderoso), Nytia-Kali (Tempo Infinito), Shmashana-Kali (Kali do Solo Abrasador), Raksha-Kali (Guardiã), Shyama-Kali (A Negra).

Os textos sagrados dos vamacarins pertencem ao Tantra (“tear. Teia; veste; disciplina; manual; caminho certo”); eles remontam ao período Gupta e posteriores e são na essência suplementos técnicos das várias escrituras purânicas de Vishnu, Siva e da Deusa, sendo alguns do “Caminho da Mão Direita” (dakshina) e outros da Mão Esquerda.
No Tantra são cultuadas Maha-Kali e Nytia-Kali. Quando não havia nem a Criação , recitam os místicos hinduístas, nem existiam ainda o Sol, nem a Lua, nem os planetas e nem a Terra, e quando as trevas estavam envolvidas nas trevas, então a Mãe, a Sem Forma, a Maha-Kali, o Grande Poder, era una com Maha-Kala, o Absoluto.
Shyama-Kali tem um aspecto um tanto meigo  e é uma divindade protetora do lar. Ela dispensa bênçãos e dispersa o medo. Nos tempos de epidemia, fome, terremoto, secas e inundações, Raksha-Kali é a deusa venerada pelas pessoas. Shmashana-Kali é a manifestação do poder de destruição. Ela habita nos crematórios, cercada de cadáveres, chacais e terríveis espíritos femininos. Da sua boca jorra uma torrente de sangue, do seu pescoço pende uma grinalda de cabeças humanas e em volta da sua cintura há um cinto feito de mãos humanas.

A manifestação feminina do Brahman, a Divina Mãe, depois da destruição periódica do Universo possui um papel primordial, ao final do grande ciclo do dia de Brahma, recolhe as sementes para a próxima Criação. Ela é como uma anciã que tem um baú no qual guarda seus artefatos domésticos. Esse poder primevo após a nova Criação habita o próprio Universo. Ela emana este mundo dos fenômenos e então impregna-o com sua energia fecundante. Prisão e liberação são seus atributos divinos. Através de sua Maya os habitantes do mundo se envolvem em “mulheres e ouro” e novamente, por sua graça, eles conseguem a liberação. Ela é chamada a Redentora e a Removedora do cativeiro que prende a pessoa ao mundo. Ela é obstinada e sempre tem que ter tudo à sua maneira, dizem seus fiéis.
O Mistério Cósmico de Maya tem três poderes. O primeiro é de obscurecer e ocultar Brahman, o Absoluto; o segundo, o de projetar a miragem do mundo e o terceiro é o de revelar Brahman através dessa miragem, que conhecemos como a ilusão do mundo dos fenômenos. Satyavati, uma das manifestações femininas descritas pelos livros sagrados, em seu barco transportava iogues para a outra margem e nessa função representava o poder revelador de Maya; mas ela também transportava passageiros da margem de lá para a de cá e com isso obscurecia e projetava. A serviço do desejo do bondoso rei Santanu, seduzido pelo seu perfume e ludibriado por sua falsa virgindade, ficou com ela na margem de cá, e ela se tornou a força ativadora de toda esfera e de toda a interação de luz e sombra no universo védico. Em uma das margens está o campo de toda alegria e dor, virtude e vício, conhecimento e ilusão, mas a outra margem do rio está além desses princípios complementares até um absoluto que ultrapassa a concepção dos princípios. No meio do caminho está a ilha, o mundo, a fonte do mito, que, em si mesmo, é tanto verdadeiro quanto falso, tanto revelador quanto obscurecedor, e deve ser interpretado como a própria vida, de acordo com o talento de cada um, de um ou de outro jeito, como verdade literal, ou como alegoria de uma transição mais profunda.
O Tantra apropriou-se do enorme panteão da mitologia popular, com sua imensa quantidade de manifestações. Entretanto seus seguidores estavam de acordo com as suposições metafísicas da sabedoria védica (prajnaparamita), em que a realidade ultima da vacuidade (sunnyata) é a única realidade, enquanto que qualquer classe de multiplicidade do mundo dos fenômenos seria em última análise irreal e produto de nossa mente ignorante e enferma. A multiplicidade de deuses seria então nada mais que uma ficção, produto da imaginação, e nenhuma dessas divindades teria existência autônoma sem a mente criadora do homem. A mente moderna, que se considera laica, no Ocidente, poderia concordar com esse postulado se não fosse o aspecto de que acreditamos que as coisas materiais ao nosso redor são reais e as divindades são uma criação falha do intelecto humano devido ao resultado das decepções de nossa vida intuitiva e instintiva perante aos acontecimentos da vida cotidiana. Ao contrário, segundo o Tantra, tanto as coisas materiais, como as divindades são irreais perante a grande vacuidade (sunnyata), mas em seu conjunto, a mitologia representa uma espécie de referência que vale muito mais que os dados da nossa experiência cotidiana, e quando manejados adequadamente, nos ajudam de forma eficiente a alcançar nossa libertação das ataduras da existência.
Para o iniciado, como exige qualquer religião milenar de Mistérios, o ritual de iniciação sempre é fundamental, como foi nas antigas sociedades tribais. Sendo assim, o tantrismo adquire as formas ancestrais de pensar e atuar, que são veladas aos não crentes, e possuem suas raízes fincadas nos recônditos do nascimento da humanidade. A palavra sânscrita para a cerimonia de iniciação é Abhishekha, que significa literalmente borrifar. O iniciado é borrifado com água batismal em um processo semelhante ao batismo cristão. O ritual se assemelha ao da coroação de um rei hindu, sendo a participação da água do Conhecimento como para coroar um novo monarca iniciado nos mistérios búdicos ou tântricos. Três métodos foram consagrados pelos devotos:
I)                    A Recitação de encantamentos
II)                  A Realização de danças e rituais
III)         A Identificação com as divindades através de uma classe especial de meditação
O Tantra elaborou um sistema de meditação sobre as divindades, que possui uma sequencia de quatro passos:
Em primeiro lugar está a compreensão da vacuidade (sunnyata) e o fundir da individualidade dentro dessa vacuidade.
Em segundo lugar o iniciante deve repetir e visualizar sílabas sagradas e mantras.
Em terceiro lugar o iniciante deve conceber a forma de uma divindade, sua representação externa, como aparece nas imagens e pinturas.
Em quarto lugar o iniciado, pela identificação deve incorporar e se converter na divindade.
Nas tradições tântricas, como no cabalismo hebraico e no seu alfabeto sagrado, o sânscrito é considerado a primeira língua universal e também sua escrita é sagrada, a pronúncia do nome de qualquer deus fará com que ele se manifeste e seu poder opere, já que o nome é a forma audível do próprio deus. A palavra suprema, da qual todo o Universo visível e invisível emana a sua manifestação absoluta, é na tradição hindu a sílaba AUM. Ela conecta o iniciante com as energias audíveis do Universo.     
Os rituais tântricos como nos foram revelados pelos historiadores envolvem a união dos princípios masculino e feminino para através do orgasmo atingir a plenitude da potência divina como microcosmo do processo de criação e fecundação universal. O hierogasmo, a união carnal dos personagens consagrados à Deusa é descrita, como instruções de culto, nos textos sagrados:
“Sou Bhairava, o Eu onisciente, dotado de atributos.”
Tendo sido assim meditado, que o devoto prossiga até a adoração à Kula.
Vinho, carne, peixe, mulher e união sexual:
Estas são as cinco bênçãos que afastam todos os pecados.
Nesses ritos o objeto sagrado é uma jovem nua dançando, devota. Prostituta, lavadeira, esposa de barbeiro, mulher brâmane ou sudra, florista ou leiteira, e a hora tem que ser meia-noite. O grupo deve ser formado por um círculo de oito, nove ou onze casais nos papéis de Bhairava e Bhairavi. São pronunciados mantras específicos, de acordo com a classe da pessoa a ser escolhida como Sakti, que então é adorada de acordo com a regra. Ela é colocada despida, mas ricamente ornamentada dentro ou ao lado de um círculo de pares de homens e mulheres devotos, e purificados através de vários mantras. A suprema sílaba sagrada da ocasião lhe é sussurrada três vezes ao ouvido; ela é aspergida com vinho, recebe carne, peixe e vinho que abençoa com seu toque e a seguir são distribuídos entre os crentes ao som dos cânticos sagrados, ela torna-se assim o instrumento de uma sequencia de atos sacramentais preliminares que culminam numa consagração geral entre mantras e formas de meditação. Exercícios eróticos podem acompanhar e encerrar os rituais já que a energia libidinal, a união do masculino e do feminino criam o uno, a perfeição da harmonia dos opostos, que proporciona o samadhi para os amantes iniciados.


As cinco bençãos acima mencionadas são conhecidas como os Cinco Emes: vinho (madya), carne (mamsa), peixe (matsya), mulher (mudra) e união sexual (maithuna). Nos chamados "ritos substitutivos" ou simulacros indicados àqueles que devem adorar a deusa numa atitude antes de criança do que de amante, madya torna-se leite de coco; mamsa, grãos de trigo, gengibre, sal ou alho; matsya, rabanete vermelho, gergelim vermelho, masur (um tipo de grão), a verdura brijal branca e paniphala (uma planta aquática); mudra, trigo, arroz com ou sem casca, e maithuna, um ritual de submissão infantil aos Pés de Lótus da Mãe Divina  

Outros rituais de adoração da Deusa envolvem o sacrifício de vitimas humanas e até mesmo a degustação de sua carne. Outros ainda, para a obtenção de capacidades mágicas, exigem que o iogue medite à meia-noite num cemitério, num chão ardente ou num local onde são executados os criminosos, sentado sobre um cadáver; se ele conseguir realizar isso sem medo, os fantasmas e as manifestações de duendes femininos serão seus escravos. Certos crentes “furam sua carne com ganchos e espetos, atravessam suas línguas e bochechas com instrumentos pontudos, deitam-se em camas de prego ou cortam-se com facas”. Os chamados Portadores de Crâneos cobrem-se com as cinzas de uma pira funerária, penduram uma corrente de crânios humanos ao pescoço, trançam os cabelos e usam uma pele de tigre sobre os quadris, levando na mão esquerda um crânio como tigela e na direita um sino que deve ser tocado incessantemente enquanto gritam: “Oh, Senhor e Esposo de Kali!”
Em geral, as seitas do Caminho da Mão Esquerda repudiam a divisão de castas durante o momento sagrado do rito. “Enquanto o tantra de Bhairava está presente na sessão, todas as castas são brâmanes”, lemos em um texto da seita. “Terminada a sessão, elas voltam a ser distintas.” O Tantra é uma forma de ioga, uma passagem para além dos limites da esfera do Dharma e em suas variantes rituais até mesmo as relações de família e os tabus de incesto podem ser desconsiderados nas sessões orgásticas. Pois se declara “que todos os homens e todas as mulheres são de uma casta única e que sua relação sexual está isenta de transgressão”. “Afasta a ideia de dois e sê de um corpo”, lemos num hino que celebra a realização desse caminho, “muito difícil é esta disciplina do amor”.
Os cultos tântricos de Shakti colocam a mulher no centro do sistema simbólico. Suas principais características são a adoração das Shaktis, as manifestações femininas com as quais os deuses masculinos, os seus pares opostos, estão unidos no abraço da união amorosa da unidade. Promovem a adoração de grande quantidade de divindades aterradoras e do seu deus Bhairava (o Terrível), a personificação da ira de Shiva, associada com a completa aniquilação do mal e sua liturgia compreende um ritual complexo conectado ao mundo dos mortos. A meditação e os exercícios respiratórios são fundamentais na sua consecução como uma prática de yoga a ser realizada pelo par de opostos onde o gozo é contido ao máximo para a realização final do atingimento do Samadhi através da libertação libidinal.  A tradição do Tantra estabelece a presença no interior de cada ser de todos os deuses e demônios dos céus e infernos oriundos de todos os patamares da mente.
O antigo budismo, em seus primórdios, conforme estabelece a tradição ariana, foi um sistema severamente masculino e somente admitia algumas divindades femininas bastante subordinadas em seu panteão. Os deuses superiores são assexuados, e também o são os habitantes dos campos búdicos. A feminilidade era em geral um obstáculo para o atingimento de níveis espirituais superiores e ao acercar-se do estado búdico o Bodhisatva deixava de renascer na forma feminina. Acreditavam que não era possível que uma mulher se convertesse em Buda.
Prajnaparamita e Tara foram as primeiras divindades budistas autônomas. O culto de Tara parece ter sido incorporado ao budismo por volta de 150 d. C. Tara, do sânscrito “Taraiati” é a divindade salvadora que nos ajuda a cruzar a outra margem do rio, que elimina o medo e o temor e que outorga o cumprimento de nossos desejos. Tara é criação da imaginação popular, como não poderia deixar de ser, já que o imaginário do inconsciente coletivo exige a figura do culto ao feminino e da psicopompa. A Prajnaparamita por outro lado originou-se como conceito em pequenos grupos de ascetas metafísicos. Na corrente Mahayana, não era só um atributo ou virtude, um livro ou um mantra, senão também representava uma divindade. A personificação da sabedoria transcendental parece ter começado por volta do começo de nossa era. Nos sutras de Prajnaparamita é descrita como “a Mãe de todos os Budas”. Qual é o significado dessa expressão? Da mesma maneira que uma criança nasce da mãe, assim a iluminação completa de um Buda vem da Perfeição da Sabedoria. Ela é a manifestação que lhes ensina a andar pelo mundo. Desta forma um principio feminino foi colocado ao lado do Buda, e até certo ponto acima dele. É interessante notar que os textos de Prajnaparamita tiveram origem no Sul da Índia, de onde o meio drávida, mais antigo, havia mantido vivas várias ideias matriarcais, que o bramanismo, mais exclusivamente masculino, havia suprimido no Norte da Índia. Quase em todas as culturas podemos encontrar no pensamento antigo o conceito que representa o principio feminino como a sabedoria que combinava a maternidade e a virgindade. No mundo mediterrâneo é a Sofia que vem representar de forma similar esse conceito, que está diretamente relacionada com os antigos cultos à Ishtar, Ísis, Palas Atena, Minerva e Astartéia. Essa concepção feminina representa uma fusão da ideia de Sabedoria com a da Magna Mater, e é adorada sempre ao lado do ser supremo masculino. Como Ishtar e a Virgem Maria , a Prajnaparamita era em essência tanto mãe como virgem.  Isso quer dizer que é fértil, frutífera em seus bons atos e suas imagens realçam a plenitude de seus seios, como provedora. Por outro lado, igual a uma virgem, permanece intocada, intacta, inapreensível.
É impossível não mencionar os Mistérios de Elêusis, consagrados em seu templo na Grécia ao culto de Démeter e Perséfone. A primeira uma deusa agrária responsável pela fecundação da terra e cujo nome sugere a maternidade e a segunda, sua filha raptada e aprisionada no submundo do Hades como deusa infernal. Sendo que ambas as personificações são uma só conjugação manifestada dos atributos da Deusa. Nas cerimonias Dioniso era parte integrante desses mistérios. Nunca saberemos quais eram os rituais iniciáticos de revelação que ocorriam dentro do templo, mas pelos relatos dos antigos sabemos que estavam diretamente relacionados com a morte e o mistério da transmigração da alma. Seus adoradores adquiriam o conhecimento que se revelado para estranhos levaria à morte do iniciado.  
Observando todos esses aspectos do tantrismo, desde suas cerimonias orgiásticas e rituais de iniciação, até a compreensão do principio feminino como conceito primordial da sabedoria chegamos ao ponto mais importante dos segredos ocultos do passado distante, de todas as religiões de mistérios elaboradas pela humanidade ao culto da deusa. O que os antigos estudiosos buscavam ocultar é o potencial gerador do feminino e a ligação indispensável do pensamento sobre a Criação com o poder da mulher em suas liturgias. Esse é o grande segredo do ocultismo. A conceituação da virgem que concebe, que nos parece contraditória, à luz da ciência hoje tornou-se a mais absoluta realidade dentro das novas técnicas de inseminação. A genética nos ensina que os fatores que levam ao desenvolvimento do macho no útero, o cromossoma Y é uma ínfima mutação da fêmea, e que o desenvolvimento genital masculino é apenas um avantajamento dos órgãos reprodutores femininos em sua fisiologia. Por analogia, como os sábios do passado puderam observar, a força primordial do Universo está associada às potências femininas primordiais e que são base da vida no planeta e talvez a base da verdadeira semente que originou todo o mundo fenomênico em suas atividades primordiais no primeiro segundo do Big Bang. É disso do que se trata o Tantra, o culto ao fator gerador das 10 mil coisas, a união dos opostos onde é o masculino o complementar, mas é o feminino o indispensável para a preservação da vida cósmica. Com a destruição dos bosques sagrados na Europa e o incêndio proposital do templo de Elêusis pelos fanáticos cristãos, adoradores de seu deus masculino, e que abominavam a sexualidade como coisa pecaminosa todos esses conhecimentos arcanos foram velados, até que o avanço da ciência pudesse demonstrar uma verdade indiscutível. Apesar do culto oficial a uma trindade amorfa pela Igreja o povo consagrou o culto à mãe do Cristo, da mesma forma que os antigos pagãos adoravam Ísis e suas respectivas manifestações, ecos do mais remoto conhecimento da humanidade e de seu inconsciente coletivo, a verdadeira herança da sabedoria milenar.             
No Livro dos Mortos tibetano a alma é aconselhada pelo lama assistente a reconhecer como projeções de sua própria consciência todas as formas vistas, tanto as celestiais quanto as infernais, e quando as cenas do inferno estão prestes a surgir, o lama diz: 

“Não tenhas medo, não tenhas medo, ó tu, de nobre nascimento! As fúrias do Senhor da Morte colocarão uma corda em volta de teu pescoço e o puxarão; cortarão tua cabeça, extrairão teu coração, arrancarão teus intestinos, sugarão teus miolos, beberão teu sangue, comerão tua carne e roerão teus ossos; mas em verdade teu corpo é da natureza do vazio; tu não precisas ter medo”.
“Não fiques aterrorizado; não fiques assustado. Se todos os fenômenos existentes – que brilham e se irradiam como formas divinas - forem reconhecidos como emanações da própria mente, o Estado de Buda (Samadhi) será alcançado nesse mesmo instante. [...]Aquele que reconhecer suas próprias formas-pensamento através de um ato importante e através de uma palavra, atingirá o Estado de Buda.”



Akasha-Bhairava
Bibliografia:

1) El Budismo - Edward Conze - Fundo de Cultura Económica - México - 1997

2) As Máscaras de Deus, Mitologia Oriental - Joseph Campbell - Ed. Palas Athena - 5º ed. - 2004

3) As Máscaras de Deus, Mitologia Primitiva  - Joseph Campbel - Ed. Palas Athena - 1992

4) História das Crenças e das Ideias Religiosas - I - Da Idade da Pedra aos Mistérios de Elêusis - Mircea Eliade - Ed. Zahar -2010

terça-feira, 24 de junho de 2014

Filme de Terror




Na masmorra fria grita o condenado

pela tortura

suor escorre pela espinha

vazio na barriga

pesadelo que aflige em vigília

como mesa servida para dois

silenciosa

escura noite desce

na neblina

a vitima padece antes da hora

espera o destino

que se avizinha

como ser acorrentado

olhando com desamor

o outro sem palavras

se debate o monstro como pode na alcova

o verdugo prepara a lâmina fina

para executar a derradeira hora

esperando logo a sessão finda

para alívio geral da platéia

quando o salão todo se ilumina

e todo mundo vai embora...



Anima




"Socorro !"

Brada a anima no entremeio

monstros e demônios lascivos
 
rompem sua esfera

lambem sua face

na busca do seio

Esfregam suas carrancas demoniais

tentam orgias e bacanais

alimentam-se as sombras

de energias primais



sábado, 7 de junho de 2014

Imortalidade e Reencarnação ou A Jornada do Guerreiro




“Quando Asuras e Devas jogam seu dado, as apostas são a Vida ou a Morte”.

“Eles lançam o dado do maior interesse ao planeta”

“As águias, no alto da Árvore Sagrada da Vida, saboreiam o mel”

“Dizem que é lá no alto onde os figos são mais doces”

“A Porta do Sol espera para quem é sensato, mas é uma barreira para os insensatos”

“Diz a Mente Superior: - Para os verdadeiros crentes eu me transformo numa ponte que cinge o mar profundo”

“O flutuar do afogado nos lembra da catarse da alma que se foi”

“Quanto aos que se entende que fizeram a travessia e foram libertados da morte; eles são Voz que se transforma em fogo; Odor que se transforma em Rajada de Vento; Visão que se transforma em Sol; Audição que se transforma em Ar; e Intelecto que se transforma em Lua”.  ( Vedantas )



"Deus é um senhor jogador. Pode-se pensar no Universo como um gigantesco cassino, com dados sendo jogados ou roletas sendo giradas todo o tempo. Você poderia pensar que possuir um cassino é um negócio muito incerto, porque você se arrisca a perder dinheiro toda a vez que os dados são lançados ou se gira a roleta. Mas em um número enorme de apostas, as perdas e ganhos atingem um resultado médio que pode ser previsto, embora o resultado de uma aposta individual não o possa". (Stephen Hawking - O Universo Numa Casca de Noz)


Quando me dirigia para o trabalho certa manhã escutando no rádio do carro meu programa preferido de música clássica tive um insight a respeito de um dos aspectos mais flagrantes da imortalidade. Cada nota tocada com esmero pela orquestra era como uma mensagem que chegava do passado até aquele presente repercutindo as impressões mentais do compositor ali impressas, depositadas naquele padrão quântico de sons e silêncios que foram compostos pela mente extasiada dele num processo criativo em tempos idos. Como uma máquina do tempo estavam ali transportados novamente os seus sentimentos, suas angústias e esperanças traduzidas naquela obra cheia de encantamento e formas sonoras, variantes com nuances sutis e que representavam no seu conjunto a essência viva do seu compositor, entre sons e silêncios, surpresas e desafios, ausências e presenças de sonoridade. A audição da obra musical, em razão da sua organização interna, portanto, congela o tempo que passa; como um pano fustigado pelo vento, atinge-o e dobra-o. De modo que ao ouvirmos música, e enquanto a escutamos, atingimos também uma espécie de imortalidade. Pode-se ter certeza que em nosso planeta só os seres humanos planejam e criam sons artificiais e usam instrumentos como ferramentas para realizar tal fim. Não é por nada que a música esteve por milênios associada às práticas religiosas e aos deuses imortais e com certeza também está diretamente ligada aos nosso ciclos vitais psicofisiológicos, de forma complexa, às nossas ondas cerebrais e aos ritmos cardíacos e respiratórios, capacidade da memória e intensidade de atenção. A humanidade sempre atribuiu aos seus deuses primordiais, a criação das canções e dos instrumentos musicais. A música sempre foi, portanto, atributo divino, como dádiva, sopro da alma que toma forma de melodia perene no eterno ritual da humanidade.

Ser e existir possuem quase o mesmo sentido na sua forma de interpretação comum. Mas será a existência individual atributo exclusivo do ser ? O individuo, na sua certeza da condição finita do ser, em seu afã de permanência perene desenvolve seu sistema de crenças como um alento, um sentimento de posse exclusiva do seu existir. Apesar da própria vida determinar o caminho do ser, ele se ilude sobre o domínio do seu livre arbítrio, do seu existir e sobre sua posse definitiva, como patrimônio pessoal. Do ponto de vista do Karma cada individuo representa uma pequena parcela, um pequeno elo de uma existência infinita, um encadeado que no plano físico é mantido pela genética e no plano espiritual pela senciência do ser, como pensamento.

Apesar da consideração que temos com todos os entes da Criação, como parte integrante da biosfera e de nossa existência no planeta de forma indissociável do meio ambiente, diferente dos outros seres, aos sencientes, que compõem a humanidade, foi delegada a chama do entendimento que leva ao abismo da certeza da morte e a ilusão do isolamento do ser, da dissociação irreal de sua própria natureza, que pretende adversa. Esse isolamento é razão fundamental e origem primordial da maioria das patologias existenciais, ora psíquicas, ora somáticas em uma complexidade exuberante. É o mal divino que acomete ao mortal, a parcela ciente da própria finitude que se vê e percebe a inexorabilidade temporal. A certeza olímpica desse proto-deus só é amenizada por alguma fé que lhe garanta o consolo de uma existência duradoura além túmulo. É esse o ponto crucial onde os poderosos, desde a mais remota antiguidade, buscaram atingir a imortalidade com a ereção de tumbas e túmulos majestosos, e a realização de sacrifícios expiatórios, e assim pretender deixarem sua impressão registrada na eternidade, para gaudio de arqueólogos que por fina ironia tem garantido a perenidade de seus ocupantes, no passado poderosos, que por puro egoísmo legaram à posteridade suas impressões e registros históricos. Do Egito à Suméria, da China ao Japão, dinastias pretendem através de suas obras, hoje ruínas, a permanência impossível de Ozimandias.     

No Ocidente é normal o homem comum confundir o conceito de imortalidade associada à crença judaico-cristã sobre a alma, e as doutrinas da reencarnação são normalmente mal compreendidas pelos estudiosos Ocidentais, e misturados os conceitos da metafísica indiana com as doutrinas neoplatônicas como se fossem um só.

Na verdadeira doutrina indiana da reencarnação nada passa de um corpo para outro e as palavras em sânscrito empregadas para “renascimento” são usadas no mínimo em três sentidos distintos:

1)Em relação à transmissão de características físicas de pai para filho, no sentido biológico de palingenesia, como “a reprodução dos caracteres ancestrais sem alteração”

2)Em relação a uma transição de um plano de consciência para outro, processo efetuado no próprio individuo e em geral numa vida e só nessa, como por exemplo o tipo de renascimento que está implícito no ditado que diz: “A menos que nasças de novo” e do qual a palavra final é deificação.

3)Em relação ao deslocamento ou peregrinação do Espírito de um corpo-alma a outro, que ocorre sempre quando o veículo composto morre e outro é gerado, do mesmo modo que a água poderia ser despejada de um recipiente para o mar e ser retirada de lá com outro recipiente; continuaria a ser a mesma substância, mas não seria “aquela” água, a menos que se atribua uma identidade e uma forma temporárias ao conteúdo do recipiente.

Na doutrina universal, com raízes profundas nas mais diversas sabedorias do Oriente e Ocidente de "uma essência e duas naturezas", as duas mentes , uma que subsiste no ato do pensamento e outra na execução da ação, são as "naturezas" do ente relativo. Como três, elas correspondem à vida contemplativa, à ativa, e à vida de prazer. Então podemos imaginar que: "antes do Princípio estava a Mente, e a Mente estava com Deus e a Mente era Deus" segundo infere a tradição oculta. Como diz o Maitri Upanishad: "dizem que a mente é dupla, pura e impura: de jugo, quando (a mente) se agarra ao objetivo do desejo e de libertação quando está desligada do objetivo." 
  
A estrutura tripartite consagrada por Platão, que compõem o sistema holístico do individuo, também revelada pela tradição da Cabala e integrante como conhecimento da tradição oculta estabelece um núcleo anímico parassimpático, uma esfera correspondente à alma individual e um Espírito imanente que permeia todo o Universo e induz a forma, como uma impressão de sua imagem, do ente relativo no plano terrestre. Enquanto a alma individual conduz a persona e glorifica a existência na Terra, o Espírito é o fio condutor da imortalidade, pois ele é a verdadeira substância do Ser no plano astral. A divisão de fato não existe já que a estrutura é indivisa, mas quando perece o corpo mortal pouco resta do núcleo parassimpático e da alma individual a não ser uma impressão no plano sutil que logo desvanece. É o Espírito que permanece como fonte inesgotável da Sabedoria Universal para continuar na sua jornada. É Dele a sensação de imortalidade que intimamente todos sentimos.

Para Plotino, os deuses "nunca aprendem" e "não se lembram"; e pelo mesmo motivo, ou seja, por não existir esquecimento, não há necessidade para lembrar ou aprender. É apenas para a mente individual do ente relativo ou mente variável, essa nossa mente que esqueceu tantas coisas, que é desejável ser ensinado e recordar-se o que se aprendeu. O que se pode ensinar a essa mente é o que ela esqueceu, segundo definem as doutrinas esotéricas tradicionais; por isso, diz Meister Eckhart, "só quando a alma souber tudo que há para saber podemos passar para o Bem Desconhecido."

Na cosmologia contemporânea pensamentos da mesma ordem começam a surgir como hipótese sobre a geração da totalidade, os homens sábios da ciência se voltam para antigos conceitos e paradigmas para tentar desvendar os mistérios do Universo: 

"Na teoria newtoniana, na qual o tempo era um fenômeno infinito e existia por si, seria possível perguntar: "O que Deus fazia antes de criar o Universo ?" Como disse santo Agostinho, não se deve ser leviano a esse respeito como foi aquele homem que disse: "Ele preparava o inferno para aqueles que prescrutam seus mistérios." Essa é uma questão séria que tem sido discutida em todas as épocas. De acordo com santo Agostinho, antes de Deus criar o céu e a terra, Ele não criou absolutamente nada. De fato isso é muito próximo das ideias dos cosmologistas contemporâneos."

"Na relatividade geral, por outro lado, tempo e espaço não existem independentemente do Universo ou um do outro. São definidos por mensurações dentro do Universo, como o número de vibrações do cristal de quartzo em um relógio ou o comprimento de uma régua. É perfeitamente concebível que o tempo, definido desse modo, dentro do Universo, tenha um valor minimo e um valor máximo - em outra palavras, um começo ou um fim. Não faria sentido perguntar o que acontece antes do começo ou depois do fim porque tais eventos não seriam definidos" ( Stephen Hawking - O Universo numa Casca de Noz )

O Ritmo, Constante Universal da Criação, eterno pulsar da Vida, é condição indispensável como frequência da energia que ocupa continuamente o não existir primordial, o Sunnyata. Ali habita toda a magnificência do Manvantara, o dia de Brahma, o amplo salão onde pulsa a amplitude da vida numa frequência vertiginosa, como um cinematógrafo tridimensional, que permeia todo o existir do Universo, como atributo da existência da matéria. O troar de miríades de sóis na infindável disputa entre as forças centrifugas e centrípetas, eterna tensão da energia nuclear e da gravidade, dá o ritmo frenético de forças titânicas, de onde geram as coisas da matéria planetária, origem primordial dos elementos atômicos forjados pelo ferreiro cósmico em seu constante divino martelar para criar o mundo das aparências.

No plano humano, a oposição das forças, em constante mutação cria a devida distinção para gerar o primeiro movimento, ritmo necessário no campo espaço temporal que denominamos vida, dimensão onde habitam as dez mil coisas com seus atributos e potenciais. Esse ritmo vital é a tensão entre o arco e a lira, entre Eros e Tânatos. Conforme Platão: “A Harmonia do mundo ordenado é uma harmonia de tensões opostas, como a lira ou o arco”. Para qualquer tipo de movimento é preciso existir uma interação entre forças opostas. A ausência de contrários é a ausência de progresso, segundo Blake. E como condição basilar do esoterismo, a ausência do “Coincidentia Opositorum” seria a ausência do principio vital que fecunda o Universo.

Nessa membrana física pulsante, fímbria que subsiste e contém a matéria densa e a matéria sutil, o ser, o fio de ligação, aos poucos se rompe, se desvanece, em energia pura, e a existência assume sua verdadeira vocação, de dimensão Una, semente primordial, partícula de luz, hólon, parcela complementar do ato da Criação, parte do clarão do Big Bang ainda presente além do véu espaço temporal da nossa pretensa realidade, a Ilusão de Maya, desde o Inicio do Tempo até o Juízo Final previsto pelos antigos profetas, não no sentido bíblico, mas no seu aspecto fenomênico, como reapropriamento da energia que não se exaure contida no primeiro ato da Criação, mas que se converte em outra forma de energia e reverte seu destino novamente para o início.

A ausência ocasional do ritmo cósmico estabelece o retorno à Fonte, ao centro da roda, onde o movimento cessa em sua dimensão imaterial e atemporal. É quando ocorre a Queda em direção á massa escura que permeia o Todo. O Pralaya da energia, a noite de Brahma que desce sobre o quantum de energia em seu retorno fenomenal. Onde acaba o tempo, acaba o ritmo da Criação.

A quantidade ou espécie de tempo em que a continuidade do caráter e da consciência do “ser” pode ser mantida num espaço dimensionado e numa base material é irrelevante. Mesmo assim o destino real da consciência de um indivíduo depende de si mesma, quer ela deva ser “salva” ou “libertada”, quer seja destinada a entrar de novo no Tempo (Pitryana) ou ser “perdida” (Nirrtha). “Não se pode pisar duas vezes na mesma água, pois novas águas estão sempre fluindo para nós” (Heráclito).


Aquiles - Louvre

A Odisséia da Alma -   

Vamos encontrar desde tempos imemoriais referências a questão da imortalidade da alma. Na Antiguidade os homens acreditavam que a alma do morto ficaria aprisionada pela eternidade na escuridão do Hades. Na “Odisséia”, Ulisses em seu tortuoso retorno da guerra de Troia, na tentativa de voltar ao lar, encontra Circe, com quem mantem um relacionamento por um bom tempo, na ilha mágica da feiticeira. Alguns contam que teve vários filhos com ela. Os companheiros de viagem do herói aborrecidos por uma vida fausta, mas sem emoções instam-no ao regresso e Circe não cria obstáculos a sua partida e ainda o auxilia para que encontre o rumo de casa. Entre todas as instruções ela diz para o rei guerreiro: “Presta atenção, a próxima escala da tua navegação deve te levar ao país dos Cimérios, ali onde o dia nunca aparece, o país da noite, do nevoeiro eterno, onde se abre a boca do mundo infernal”. Dessa vez Ulisses terá que enfrentar muito mais que as normais aventuras dos mortais, mas terá diante de si a fronteira do mundo dos mortos. Circe explica detalhadamente os rituais que Ulisses terá que proceder: “...irás a pé até uma fossa, terás farinha contigo, leva um carneiro, degola-o, espalha o seu sangue, e verá surgir do chão a multidão dos eídola, dos duplos, dos fantasmas, das almas dos mortos. Deverás reconhecer e agarrar a alma de Tirésias, o adivinho, fazê-lo beber o sangue do teu carneiro para que ele recupere certa vitalidade e te diga o que deves fazer”. Ulisses vai até aquele país e no local cumpre os ritos necessários. Diante da fossa degola o carneiro e deixa seu sangue pronto para ser bebido. Então percebe vindo em sua direção os oútis, os que são ninguém. São os sem nome, os nónymnoi, os que não têm mais rosto, que não são mais visíveis, que não são mais nada. Formam uma massa indistinta de seres que outrora foram indivíduos, mas dos quais nada mais se sabe. Dessa massa aterrorizante sobe um rumor indistinto e profundo. Eles não falam, só produzem um barulho caótico. Ulisses aterrorizado teme ser absorvido por essa massa disforme, teme ser perdida em meio ao barulho sua palavra ardilosa, sua glória e sua fama ser engolfada pela massa e sua celebridade ser abandonada nesse esquecimento de morte. Ele corre o risco de perder-se nessa noite, mas de repente vislumbra Tirésias.

Tirésias bebe do sangue e logo passa a contar para o herói seus passos futuros, sua volta para a amada esposa, e também lhe dá notícias de todos, os vivos e os mortos que não retornaram de Troia. Ulisses então enxerga as sombras de alguns companheiros da guerra, vê sua mãe, e reconhece Aquiles entre os mortos e o interroga. Aquiles após beber o sangue que lhe restitui a vitalidade, nesse momento em que toda a hélade canta seus feitos, num eterno sentimento de orgulho de sua glória, no auge do seu kléos, palavra que significa "ouvir o que os outros dizem sobre você". Um herói grego determina assim o seu kléos por realizar grandes obras ou participar de batalhas, muitas vezes através de sua própria morte. Ele que pretendia que sua superioridade fosse reconhecida até mesmo no inferno responde à Ulisses: “ Eu preferia ser o último dos camponeses enlameados, lastimáveis em meio ao estrume, o mais pobre vivendo à luz do sol, a ser Aquiles neste mundo de trevas que é o Hades”. Com essas lamúrias Aquiles contraria o que tinha antes proclamado na “Ilíada”, naquela obra ele dizia preferir uma vida curta de glórias a uma vida longa e sem aventuras para sua mãe Tétis que adivinhava grave destino. Para ele antes não havia hesitação em escolher a vida gloriosa, a morte heroica em plena juventude, pois a glória de uma vida breve que termina na “bela morte” do guerreiro valia bem mais que o resto. Agora, junto a Ulisses, sua sombra incorpórea afirma chorosa exatamente o contrário. Aprisionado no mundo dos mortos diz ter preferido uma vida inglória de um sujo camponês em algum recanto obscuro da Grécia para seu antigo companheiro de batalha.

Mas na saga de Ulisses o assunto da mortalidade é tema recorrente nesse verdadeiro processo de evolução do herói em direção ao seu destino derradeiro. Ainda tentando retornar, após a morte de toda sua tripulação, sozinho perante as intempéries é salvo por Calipso em sua ilha mágica, que não existe nem no plano dos homens, nem dos deuses, no imenso Oceano além do espaço e do tempo. Lá Calipso o recolhe exaurido pelo naufrágio, quase morto afogado. Nesse mundo, à parte de tudo, vai morar toda uma eternidade, cinco, dez, quinze anos, tanto faz, pois a contagem do tempo humano não existe mais. Cada dia se assemelha ao outro, em seu interlúdio amoroso com Calipso, uma relação apaixonada, sem mais contato com quem quer que seja, uma solidão total a dois. Num tempo além do tempo todo dia é igual ao anterior. Na ilha de Calipso, Ulisses está fora do mundo. Calipso é sempre solicita e amorosa com ele. Mas é como determina seu nome Kalypsó, que se origina do verbo grego kalyptéin, “esconder”, aquela que se esconde num espaço além de tudo e esconde Ulisses dos olhares do mundo.

Por intervenção direta da divina Atena junto ao seu pai Zeus, sob a justificativa que todos os heróis vivos haviam retornado aos seus lares desde a guerra de Troia, pede clemência para Ulisses, que é o único herói a permanecer ainda cativo na ilha de Calipso. Diante a insistência da filha, Zeus compadecido joga os dados e lança a sorte: Ulisses deve voltar. Decisão divina que deve ser apressada, pois é necessário que Calipso o permita. Que Hermes então se encarregue do assunto. O deus emissário fica descontente, a ilha mágica fica muito longe de tudo, que está em lugar algum e ele nunca havia posto seus pés lá. É necessário cruzar uma imensa extensão de mar Oceano, além dos limites da realidade.

Veloz como o pensamento ele com suas sandálias aladas desembarca a contragosto na ilha, que imediatamente o maravilha, pois se parece um pequeno paraíso. Há jardins, fontes, bosques, nascentes, flores, grutas habitáveis e mobiliadas onde Calipso tece e fia entre um momento e outro de amor com Ulisses em suas acomodações confortáveis e cobertas de sedas. Hermes fica maravilhado, mas não pode deixar de comunicar à Calipso a mensagem do deus. Esta o reconhece imediatamente e pergunta a razão da sua visita. Ele responde: “Se dependesse de mim eu não teria vindo, mas tenho uma ordem de Zeus. As coisas estão decididas, deves deixar Ulisses partir”. Sem escolha, mas sem deixar de admoestar o ciúme dos deuses por ela estar vivendo bem tanto tempo com um herói mortal ela responde: “Está bem, aceito, vou mandá-lo de volta”.

Enquanto isso Ulisses estava sozinho em um alto promontório de onde avistava o mar terrivelmente encapelado que se arrojava contras as pedras da ilha. Com toda a tristeza do mundo chorava amargamente seu destino, chorava de remorso pela esposa Penélope, pela sua Ítaca, a terra natal perdida, seus membros tremiam convulsionados. O homem grego afastado por força de sua polis é como um desgarrado. Calipso sabia que Ulisses ainda pensava no regresso, que ele era um homem do retorno. Mas guardava uma falsa esperança de mantê-lo ao seu lado, de fazê-lo esquecer do lar, da esposa e também que tinha sido no passado. Seu percurso tirou-o do caminho dos homens, para levá-lo ao caminho dos mortos, entre os Cimérios, até a extrema fronteira do mundo da luz. Agora ele está fora de combate, nesse limbo isolado de tudo na extensão do mar Oceano. No mundo dos mortos, entre os espectros ouvira Aquiles lhe dizer como é terrível estar morto, como é terrível ser um espectro sem vida e consciência, essa sombra anônima que é o pior futuro que um homem pode imaginar. Calipso vai tentar lhe oferecer a imortalidade, permanecer jovem para sempre, não tendo mais que temer a morte e a idade provecta. Ela tinha plena consciência de sua oferta, pois conhecia as armadilhas do destino. Conhecia o destino da Aurora, Éos que caíra de amores por um mortal que se chamava Títono. Raptara-o para viverem sempre juntos, e pedira a Zeus, com a desculpa de que não poderia mais se separar dele, que o fizesse imortal. Zeus, com um sorriso ardiloso concedeu-lhe a imortalidade. Assim sendo, no Olimpo, onde habitava Aurora, veio viver o jovem Títono, com o poder de nunca morrer, mas aos poucos foi envelhecendo, e aos duzentos anos tinha a aparência de um couro enrugado e encarquilhado, que não podias mais falar, nem se mexer, alimentando-se de nada. Um fantasma vivo.

Não parece ser essa a dádiva pretendida por ser humano algum na Terra. Calipso, entretanto, oferece-lhe a não morte e a eterna juventude, mas mesmo essa dádiva iria condená-lo a uma morte eterna em vida e privá-lo de seus atributos de herói guerreiro que retorna glorioso. Se aceitasse essa oferta teria que abrir mão de tudo isso. Para os gregos o que oferecem para Ulisses não é a imortalidade, mas a imortalidade anônima, sem brilho e sem glória (akléos). Uma vida perpétua na escuridão, sem que ser humano algum mencione seu nome, sem que nenhum bardo cante sua vitória. Como diz Píndaro em um dos seus poemas, quando uma façanha foi realizada, não deve ser “escondida”. Para que a façanha atinja a imortalidade é necessário que seja cantada em prosa e verso. Se ele continuar na ilha, não haverá mais Odisséia, nem existirá Ulisses, então o dilema se resume numa imortalidade anônima, que não o tornará diferente dos espectros do Hades, que aos poucos perderam sua identidade ou como mortal, será imortalizado pela glória eterna. Ele decide partir. Ele não quer mais dividir seus lençóis com essa bela ninfa com quem convive há mais de dez anos. Tudo que deseja é reencontrar sua vida mortal e inclusive morrer se for preciso. Ele afirma seu desejo por Penélope, que pode não ser tão bela como a ninfa, mas ela é sua amada, sua esposa, sua pátria. “Muito bem”- Diz Calipso, “compreendo”. Calipso então o ajuda o herói a construir uma jangada de troncos atados com a mais resistente fibra por ela produzida para formar uma jangada sólida com um mastro. Assim Ulisses deixa a ilha para novas aventuras em direção da eternidade. Retorna ao lar, mas a passagem para a imortalidade fica para sempre selada pela ira de Poseidon que bloqueia o caminho da eternidade.

Graças à decisão do personagem, que encontrou sua sabedoria nessa jornada arquetípica podemos inferir que ao alcançar a possibilidade de uma vida de eternidade Ulisses na verdade busca resgatar sua humanidade, prefere os altos e baixos da vida mundana, a incerteza e o perigo do retorno ao mar em uma jangada, a certeza da velhice e da morte junto aos seus, o retorno ao seu reino natal, junto ao afeto do filho e da esposa. Para o homem comum a vida eterna, tão desejada por alguns, propalada nas religiões de mistérios do Ocidente, se assemelha mais a uma maldição, como a que ocorreu a Títono, pois tais memórias e identidade perpétua no individuo seriam com certeza um fardo, um castigo, em vez de uma graça para alguém fadado à eternidade, mesmo que vivendo entre os deuses. No Ocidente a ideia, ou ênfase, na dignidade da vida individual, de para cada alma, um nascimento, uma morte, um destino, uma maturação da personalidade que se estende para o além, onde seja, no inferno, no purgatório, no céu, em que a alma do morto permanece constituída é um dos dogmas mais sagrados das principais religiões de origem semítica. No Oriente a ideia de continuidade da personalidade inexiste. O centro de atenção não é o individuo, mas a mônada, à qual não pertence intrinsecamente individualidade alguma, mas que transita de um ente relativo para outro, de larva a deus, de deus a soldado, dentista, alfaiate, numa sucessão contínua, como um cordão que liga tudo ao grande Oceano Cósmico da Vida, onde cada porção de sua água nunca é igual a outra.



Tao e Zen -

No Zen Budismo e no Taoismo, as práticas de meditação servem para elevar o individuo ao contato com a verdadeira natureza do Bodhi, que é nada mais, nada menos, que a ligação com a Verdadeira Essência ( Prajna ) da Sabedoria. O Prajna e o Sunnyata andam sempre de mãos dadas, segundo os mestres do Zen, o Vazio é o conteúdo indistinguível do Prajna, que deixa de ser uma mera concepção de conhecimento que lida com objetos relativos; é um conhecimento da mais alta ordem possível na mente humana, pois é a centelha daquilo que constitui fundamentalmente todas as coisas.

Na terminologia filosófica chinesa, hsing é muitas vezes empregado para designar o conteúdo fundamental, ou aquilo que sobra depois de se retirar tudo que é acidental da alguma coisa. Hsing é como algo fundamental no ser de uma pessoa ou de uma coisa, embora não deva ser confundida como entidade individual, como uma semente ou núcleo que resta quando todos os invólucros exteriores são removidos, ou como uma alma que escapa do corpo após a morte. Hsing significa aquilo sem o qual nenhuma existência é possível ou imaginável como tal. Como sua formação morfológica sugere, hsing é “um coração ou uma mente que vive” dentro do individuo. Em linguagem figurada pode ser denominada Força Vital.

Segundo o grande mestre Zen Hui-neng: “o hsin (mente ou coração) é a propriedade e Hsing é o proprietário: o proprietário governa a propriedade; quando há hsing, há proprietário; quando o hsing se ausenta, desaparece o patrão; quando há hsing, a mente (hsin) e o corpo existem; quando não há hsing, corpo e mente são destruídos. O Buda deve ser construído dentro do hsing, e não há que ser procurado fora do corpo."

Com isso, Hui-neng procura explicar-nos de forma mais clara daquilo que ele entende por hsing. É a força dominante em todo o nosso ser . É o principio da vitalidade física e espiritual, Não só o corpo, mas também a mente, em seu sentido mais elevado, funcionam por causa da presença de hsing em ambos. Quando não há hsing, tudo está morto; mas isso não significa que hsing seja alguma coisa à parte do corpo ou da mente, que se introduz nele para acioná-lo, e que o abandona por ocasião da morte. Esse misterioso conceito de Hsing não é contudo de natureza lógica, mas um fato que pode ser experimentado em nossa existência. Hui-neng chama-o tzu-hsing (natureza própria ou Ser-em-si), no seu texto do “T’an-ching”.

Dentro desse conceito o Zen pretende transcender a ideia do dualismo, já que na própria natureza original existe conhecimento Prajna, pois conhecer é ser e ser é conhecer, no sentido da percepção do si-mesmo. A natureza reflete-se em si mesma e isso é auto-iluminação, inexprimível em palavras.

A ideia motivadora de mudança e transcendência está expressa no sermão do fogo de Buda:

"Tudo, Bhikkhus, se incendiou. Que tudo, Bhikkhus, se incendiou ? O olho se incendiou, o visível se incendiou, o conhecimento do visível se incendiou, o contato com o visível se incendiou, o sentimento que nasce do contato do visível se incendiou, seja prazer seja dor, seja nem prazer nem dor. Por que fogo é ele atiçado ? Pelo fogo da lascívia, pelo fogo do ódio, pelo fogo do engano ele é atiçado, pelo nascimento, idade, morte, dor, lamentação, pena, sofrimento, desespero ele é atiçado, isso é o que digo. O ouvido...diz. O nariz...diz. A língua...diz. O corpo...diz. A mente...diz.

Sabendo disso, Bhikkhus, o homem sábio, seguindo a via ariana, erudito em lei, enfastia-se do olho, enfastia-se do visível, enfastia-se do contato com o visível, enfastia-se do sentimento que nasce do contato com o visível, seja ele prazer, seja ele dor, seja ele nem prazer nem dor. Enfastia-se do ouvido...dor. Enfastia-se do nariz...dor. Enfastia-se da língua...dor. Enfastia-se do corpo...dor. Enfastia-se da mente...dor.

Quando se enfastia  dessas coisas, torna-se vazio de desejo. Quando se enfastia do desejo torna-se livre. Quando livre, sabe que está livre, esse renascimento está no fim, a virtude realizou-se, o dever foi cumprido, e que não há mais volta a este mundo; e assim se sabe."

A ciência olha com desconfiança para tais afirmações baseadas na tradição humana, na sua tentativa incansável de reduzir todos os fenômenos da natureza e medir seus efeitos no plano material. Assim os cientistas pretendem a existência de forças, no sentido de vontades cegas, enquanto o animismo tradicional, que também é uma espécie de filosofia, personifica essas forças e atribui a elas o livre arbítrio. Uma das teorias (Teoria-M) dos cosmólogos afirma que nosso espaço tem nove ou dez dimensões, mas acredita-se que seis ou sete sejam enroladas em escalas muito pequenas, restando três dimensões que são grandes e aproximadamente planas. É um axioma da ciência que a visão do observador define em larga medida os fenômenos observados. O principio Antrópico diz que vemos o Universo do jeito que ele é, ao menos em parte, porque existimos, em oposição a ideia dos fisicistas de uma teoria unificada, totalmente preditiva, na qual as leis da natureza são completas e o mundo é do jeito que é, pois não poderia ser de outro modo. Os cientistas se esforçam para estabelecer a posição real e a velocidade de partículas subatômicas através de cálculos de probabilidade proporcionados pela física quântica, mas seus resultados mais se assemelham às crenças, do que a uma realidade objetiva no sentido cartesiano, num determinismo absolutamente relativo. Existem milhões de probabilidades para o curso das partículas em miríades de dimensões espaço-temporais possíveis afirmam os sábios da ciência. Poderia nossa verdadeira existência seguir paralelo semelhante?

"o conhecimento da posição de uma partícula é complementar ao conhecimento de sua velocidade ou impulso. Se conhecemos uma com alto grau de precisão, não podemos conhecer a outra com a mesma exatidão; mas temos que conhecer as duas para determinar o comportamento do sistema. A descrição do espaço-tempo dos eventos atômicos é complementar à sua descrição determinista" ( Princípio de Indeterminação ou Complementaridade - Dr. Werner Heisenberg )

"Aquilo que mantém entrelaçado o céu, a terra e o espaço entre eles;
Também a mente, com o sopro da vida;
Apenas isso deve ser reconhecido como o Espírito Único.
Rejeita qualquer outra conversa.
Essa é a ponte da imortalidade"

( Mundaka Upanishad )




Imortalidade Cibernética –

“E quando a informação mesmo se torna o maior negócio do mundo, os bancos de dados sabem mais sobre os indivíduos que os indivíduos sobre si mesmos. Quanto mais as memórias de dados registram coisas a nosso respeito, mais deixamos de existir.”
(Marshall McLuhan – “Do Clichê ao Arquétipo”)

O homem contemporâneo vive em um limiar tecnológico, uma ultima fronteira onde a tecnologia produz de forma autônoma saltos cada vez maiores em direção a uma mutação irreversível da condição humana. Nessa rede global onde grande parte da população mundial está inserida o homem cada vez mais se adapta à condição de membrana osmótica, terminal e interface de entrada de dados para o imenso fluxo de informação que transita pelos seus canais na velocidade da luz. Para muitos a realidade intrínseca de suas vidas já é o meio das redes informatizadas. Suas impressões, dados pessoais, gostos, pensamentos mais íntimos, hábitos, seu lado numinoso e como não poderia deixar de ser, sua faceta mais sombria está ali impressa de forma indelével, possivelmente para toda a eternidade. Informação que o tempo não corrói sobre o que somos e queremos, sobre onde estivemos, quem amamos, um banco de dados cheio de recordações existenciais.

Os estudiosos denominaram antropoceno a época atual onde a humanidade atingiu seu apogeu como espécie dominante no planeta. Poderia ser esse apogeu nada mais que o começo do fim da humanidade como a conhecemos? Os seres orgânicos que denominamos humanos não estarão aos poucos sendo absorvidos pela tecnologia que tão bem desenvolveram?

Imaginem que viajantes extraterrestres um dia retornem no futuro para visitar nosso planeta que já conheciam desde o primórdio dos tempos. Ficarão com certeza surpresos e impressionados com as mudanças ocorridas nos últimos milhares de anos. A superfície do planeta antes coberta com uma vegetação bruxuleante e cheia de seres de todas as espécies e uma infinidade de vida habitando em seus oceanos se transformou em um deserto cercado por mares contaminados, cheios de resíduos de polímeros, com todas as dimensões possíveis e terras estéreis pelo excesso de cultivo e devastação. Para tentar descobrir o que ocasionou uma mudança tão drástica num bioma antes fértil e cheio de biodiversidade levado ao total colapso terá que buscar nas tecnologias abandonadas pelos antigos moradores e descobrir em meio as ruínas de megacidades o esconderijo dos grandes centros de bancos de dados onde por fim encontrarão registro do que restou da humanidade. Suas mais profundas paixões, seus interesses, seu lado mais obscuro, suas guerras e conflitos intermináveis, seu desprezo pelo meio natural, sua voracidade traduzida num consumo desenfreado de bens e serviços, tudo isso e muito mais estará registrado como memórias, impressões, como os antigos hieróglifos pintados nas paredes das tumbas egípcias, memórias do que foi o auge da civilização terrestre com seus aspectos positivos e negativos.

Quando esses astronautas improváveis tentarem contato com a megaestrutura ficarão surpresos como os sistemas continuam cumprindo fielmente suas funções, coletando e armazenando energia de onde for preciso, consertando suas unidades, gerindo prioridades de acordo com as normas e programas deixados por seus criadores nos imensos bancos de memória sólida que preenchem profundos subterrâneos onde a proteção é mais eficiente contra cataclismos cósmicos. Ao tentar conectar seus sistemas inteligentes e verificar o conteúdo desses programas perceberão a busca incontrolável de perenidade dessa espécie, seus apelos e esforços de enviar suas sementes ao espaço profundo, de forma ainda rudimentar, embrionária, numa última tentativa de perpetuar sua espécie agonizante de forma de vida. Quando interagirem com as redes lógicas, talvez descubram em seus recônditos verdadeiros universos paralelos, espaços virtuais majestosos com cidades, estradas, florestas e biodiversidade criada à semelhança do bioma antes existente, último engenho de uma civilização de biocarbono que emigrou para um mundo paralelo. Lá se encontram as sombras, as identidades de todos, ou uns poucos privilegiados, suas impressões e personalidades vivendo uma realidade comandada por probabilidades infinitas em seu mundo digital comandado por algoritmos, na grande maioria e por opção própria, unidades esquecidas de seu passado na superfície do plano planetário, vivendo suas existências dentro dos paradigmas do fluxo de elétrons em fontes capacitivas, cópias quase perfeitas de seus mestres em um arremedo de imortalidade após o ocaso do mundo orgânico num processo interminável tipo “Game Over” e reinicialização, onde todas as mentes estão ali programadas em uma rede planetária cibernética vivendo a maldição da imortalidade do Judeu Errante. Estarão eles comandando a exoestrutura, o Deus Ex-Machina que os contém? Suas ações virtuais determinam a existência da estrutura que os encerra? Possuem mitos de Criação para justificar suas existências ? Cantam ainda seus últimos dias, o seu ragnarok?

Para os que desconhecem a lenda do Judeu Errante, também chamado Aasvero, Asvero, Ahasverus, Ahsuerus ou Ashver, personagem que faz parte da tradição oral do Ocidente cristão, dizem que trabalhava numa oficina de sapateiro ou num curtume na rua por onde passavam os condenados à morte pelos romanos, carregando suas cruzes. No dia da crucificação do Cristo, ao passar ele carregando sua cruz, derrubou-a na frente da loja do homem que tratou-o com desprezo e ironia. Jesus teria então o amaldiçoado a vida eterna, até o dia da Salvação das Almas. Como podemos perceber até a sabedoria popular acredita que a imortalidade, muito mais que uma benesse, pode ser uma terrível maldição. 




Bibliografia:

1) O Que é Civilização - Ananda Coomaraswamy - Ed. Siciliano - 1992

2) A Doutrina Zen da Não-Mente - D. T. Suzuki - Ed. Pensamento - 1993 - 9° Ed.

3) O Universo Numa Casca de Noz - Stephen Hawking - Ed. Saraiva - 2012 - Ed. Especial.

4) Do Clichê ao Arquétipo - Marshall MacLuhan / Wilfred Watson - Ed. Record - 1973.